Capítulo III | Crônicas










O laboratório do Professor Carvalho nunca foi tão longe, ao menos, não para a concepção de May. Tudo bem que teve que parar e perguntar para dois moradores da mesma rua sobre a direção certa — o que, particularmente, detestava fazer — e se sentiu uma tonta quando a dica recebida era a mesma: “basta seguir o farol, não tem erro”. Além disso, onde estava com a cabeça quando optou por um par de botinhas em uma cidade onde não há nada além de paralelepípedo e uma superfície tão áspera quanto a rusticidade de Pallet, nem mesmo ela sabia dizer.





Mas ainda assim, tentava — e como tentava — transparecer o máximo de segurança possível. Estava tudo sob controle e nada a tiraria do sério, nem mesmo reduziria o seu encanto que lhe custou um bom tempo de produção. O reconforto em seu caminhar manso — ora desviando de um bloco saliente do trajeto, ora evitando um futuro tropeço — e a fragrância de seu próprio perfume adocicado ao extremo quando a leve brisa marítima a favorecia eram elementos que suavizavam a sua excursão excruciante para o tal do laboratório.









Ao menos, nisso poderia se convencer com gabarito. Onde quer que passasse, conseguiria arrancar olhares surpresos ou extasiados de alguém e, pelas ruas do vilarejo, não foi diferente. Uma pena que não se importaria com um bando de moleques que não corresponderia ao seu padrão de beleza, nem mesmo para devolver o olhar. Muitas vezes, até evitava contato com esse, de acordo com sua própria concepção, tipo de gente. O importante mesmo era que o laboratório já estava se aproximando, pôde avistar uma placa logo à colina que teria que subir. Ao menos a vegetação vizinha e o cercado branco que rodeava o farol e a construção eram bonitos e contrariavam o aspecto pitoresco de Pallet.





— Ok. Agora não tem erro, eu espero. — Murmurou consigo mesma. Não estava tão quente como imaginava e talvez seu conjunto selecionado a dedo foi de grande ajuda, mas tão logo a sua bandana amarrada na cabeça começaria a suar e reclamar do sol a pino.





Em nenhum momento, se voluntariou para cogitar qual ou quais Pokémon estariam dispostos para que escolhesse. Nunca foi chegada no assunto e, agora que finalmente cogitou de maneira menos superficial, não fazia ideia de quais eram os chamados iniciais, ou iniciantes, de acordo com o que seu pai havia a ensinado. Se tivesse botado mais reparo em suas lições básicas, não tinha certeza de que mudaria alguma coisa; uma vez que seu intuito principal nunca foi treinar arduamente um Pokémon para seguir a carreira ou os passos de sua família ou algo do gênero.





Tratou de apressar os passos, não apenas porque o passeio se tornou mais plano e conservado, mas para remoer quaisquer ideias sobre esse mundo de monstrinhos e, no perdão da palavra, batalhas. Como era apática a ideia de Pokémon confrontarem entre si, por qualquer que fosse a vontade de seus treinadores. Era, na verdade, ridículo. Mais alguns instantes e estaria reclamando sozinha sobre o assunto, se não fosse por um esbarrão com força em um desconhecido à sua frente.





— Ai! Ai. Essa placa eu não anotei. — Não tardou muito para o garoto se recompor. Deve ter sido a primeira vez que May pôde ver alguém que tinha coragem de sair calçado de chinelos com uma calça jeans. Na verdade, parecia um jeca. — Desculpa, moça! Eu tava um pouco distraído. — Por fim, sorriu com simpatia.





Se estava assumindo a culpa apenas por simpatia ou por outro motivo, a garota que não daria brecha para quaisquer próximas intenções. Fez bico e o ignorou com o rosto virado.





— Devia prestar mais atenção por onde anda, seu abobado. — Não era para tanto, mas a jovem Mapple fez questão de alisar sua camisa que nem se amassou com a pancada, talvez apenas como um agravo dramático ao caso.





— Se machucou? — Para a visão do menino, um tanto atordoado, ela estava em perfeitas condições, a não ser pelas voluntárias e gratuita grosseria por algo tão rotineiro.





— Não, mas — Assim que terminou de se limpar de qualquer resquício de poeira que havia adquirido daquele maltrapilho à sua frente, o encarou com desdém. — Já é difícil de andar por essas ruas esburacadas, imagina com um bobo alegre sorrindo aos quatro cantos ao invés de prestar atenção à sua frente?





O menino e seu roedor amarelo entreolharam, possivelmente se questionando o que haviam feito de tão calamitoso ou desumano a ponto de receberem uma descarregamento de ofensas. Ainda assim, o rapazinho protestou com um semblante empático e generoso e estendeu a mão, no anseio de passar uma borracha no ocorrido e seguirem o curso de suas vidas normalmente.





— Bem, acho que começamos isso do jeito errado. — Sorriu à menina. — O meu nome é Ash Ketchum. E esse aqui é o meu amigão, o Pikachu! — O referenciou com um breve apontar com a cabeça.





— Pika! Pika-chu! — Tão disposto quanto o seu dono, o pequeno Pokémon dispôs a melhor de suas expressões sorridentes.





— Hm, tá. — Dispensou o cumprimento do indivíduo que seu semblante, por sua vez, não reconhecia o momento em que havia o pedido uma introdução ou o seu nome. Ao invés disso, optou por um delicado e quase inexistente aceno com os dedos. — May. Agora, eu preciso ir para o laboratório. Foi bom te conhecer. Tchau!





Era óbvio que a entonação de sua voz denunciava o oposto do que dissera, porém, paciência. Ash deu de ombros e prosseguiu com o seu destino. May fez o mesmo, apesar de cruzar o caminho por ele e continuar adiante. Se havia outro laboratório na cidade de Pallet, o menino realmente não sabia da sua existência.





— Hã, mas — Interveio, a chamando antes que fosse impossível imobilizá-la com tamanhos passos afobados. — Se você tá indo ao Laboratório do Professor Carvalho, a entrada é por aqui. — Apontou à respectiva porteira. — Por aí, você só vai chegar no pasto atrás do prédio.





Indescritível era o tamanho da vergonha da mocinha ao momento em que preservou o seu semblante ruborizado de raiva por um equívoco tão idiota. Não foi tão difícil se recompor e passar pelo caipira sabichão que tanto se esforçava para demonstrar sua simpatia com ela.





— Eu já sabia. A culpa é sua por ficar me distraindo!





Não podia afirmar com precisão, mas, por um momento vendo caminhá-la com um pingo notável de estresse nos pés pesados, Ash teve pena do futuro Pokémon que cairia nas mãos daquela garota. Não tinha a mania — ou muito menos gostava da tal prática — de pré-julgar as pessoas, embora May satisfizesse a condição de que era uma das meninas com um estoque esbanjado de beleza e futilidade, meio a meio; ansiava por estar redondamente enganado, inclusive.





— Então, tá bom. — Assim que fechou a porteira, optou por seguir um ritmo mais lento, até para que não a alcançasse e fosse taxado como perseguidor ou similar.













O café da manhã acabou tão antes de começar para Max. Na verdade, não quis mais saber de comer qualquer coisa ou de escutar a revolucionária e retumbante história que seu pai tinha para lhe contar. Se arrastou para retornar até o seu quarto e, sem hesitar, se despencou contra a maciez do colchão; mesmo com seus óculos de grau em perfeitas condições alocados em sua cara. O incômodo por eles não era nada perante a notícia que havia recebido de seus pais há menos de dez minutos.  





Tinha perfeita noção de que papai era um homem muito ocupado, vivia viajando e, o mais importante, era o melhor líder de ginásio que sua mente poderia projetar, mas, pela primeira vez, queria que as coisas não fossem como são. Não fazia ideia do que se tratava a denotada convenção tão extraordinária que havia mencionado e não tinha prestado em atenção em quase mais nada depois do que disseram a respeito de terem que organizar uma viagem para o continente de Hoenn.





Não lembrava muito de lá; não era para menos, tinha se mudado para Kanto quando tinha apenas cinco anos. Podia se dizer que já estava sólido por essas bandas e, de repente, teria que abandonar o seu lar para uma jornada de reuniões, congressos e outras coisas que seu pai fizera questão de enfatizar com tanto brilho que parecia mesmo refletir em algo bom para o futuro, não podia julgá-lo por isso — nem por nada, talvez, visto o tanto que o admirava.





Poderia argumentar para que sua mãe ficasse aqui e ele lá, mas que poder uma criança de quase dez anos teria perante os seus progenitores? Seria o mesmo que rirem na sua cara por algo tão frívolo. Além do mais, a presença de Caroline era importante para manter a boa reputação de sabe-se lá das quantas, não fazia questão de relembrar as palavras ditas por ambos.





Antes mesmo que se levantasse e arremessasse um travesseiro com todas as suas forças contra a parede, avistou a sua mãe prestes a bater na porta encostada.





— Posso entrar? — A mulher indagou no tom mais dócil possível, tão irrefutável que o garotinho cedeu em, lentamente, se encaminhar até ela e abrir o restante da porta.





— S-Se veio arrumar minhas coisas para a mudança — Nítido que sua voz estava tão choramingada quanto a sua força de vontade de evitar olhares e desviar o rosto da mãe. — Eu não vou ajudar em nada.





— Na verdade, eu vim te dar um voto de confiança. — Sorriu, assim que se sentou na cama do menino. O caçula parou de procurar algo para fazer para disfarçar o seu choro introvertido e prestou certa atenção na mulher.





— Como assim?





— Bem, eu sei que você gosta de morar aqui e- fez muitos planos para conhecer Kanto. — Assim que inquiriu, o convidou, com um gesto amável, para que se sentasse ao seu lado. Em seguida, o menino a obedeceu e a encarou com uma súbita curiosidade. — Além disso, seu pai e eu concordamos que não fará bem para você e para a May que fiquem reféns das nossas rotinas por conta de um momento como esses.





— Então, vocês não vão mais?! — Abriu um largo sorriso esperançoso no rosto, a julgar pelo tom macio e nas palavras precisas e bem observadas de Caroline.





— Calma, mocinho. — Riu de leve. — Esse congresso é importante para o seu pai. Você não quer que ele deixe de ser o melhor líder de ginásio de todos os tempos, não é?





— Não, eu — O semblante arrependido do menino se mostrou competente em repudiar o seu egoísmo anterior. — Eu nunca poderia querer algo assim. Eu- Eu quero que o papai seja o melhor para que, um dia, possa vencer ele e ser novo melhor!





— Por isso que eu me certificarei de que ele se tornará o melhor ou puxarei as orelhas dele como puxo as suas, ouviu? — Concedeu uma piscadela brincalhona ao menino que, aos poucos, cedeu a uma breve gargalhada.





— Mas — Tão logo, o humor de Max concedeu espaço à preocupação frustrante. — E eu? O que eu vou fazer? Ficar aqui sozinho?





— Talvez você poderia ficar com a sua—





— Não! — Protestou quase no mesmo instante de sua mãe. — Tudo, menos isso!





— Bom, então posso arrumar suas coisas para partirmos? — Arqueou uma sobrancelha com um semblante divertido.





— Isso é golpe baixo, mamãe. — Cruzou os braços, emburrado.





— Esse truque não funciona mais, rapazinho. — Desvencilhou os braços do menino que acabou desistindo de seu método infalível de dois anos atrás.





— Mas, mãe — Não estava em posição de argumentar, mas seu instinto infantil e questionador não poderia cessar nem mesmo um minuto. — Logo com a May? Você sabe que ela me odeia! E eu odeio ela também!





— Não diga uma coisa dessas, Max! — A voz elevada da senhora Mapple o repreendeu com propriedade. — Ela não te odeia. Só não está acostumada a conviver com você.





— Isso é mais uma prova de que ela me odeia. — Suspirou, convencido, porém nem um pouco contente com sua vitória. — Não tem por que eu gostar dela, também.





— Ora, mas vejam só — Ironizou a mulher, assim que se levantou. — Como que vocês podem se odiar tanto se eram dois peraltas antes de nos mudarmos para cá?





— Olha, eu — Levantou o indicador, na tentativa fútil de elaborar algo que reconhecesse uma memória não muito distante. — Eu não me lembro disso. Acho que a senhora deve estar nos confundindo com outro casal de filhos.





— Muito espertinho. — Balançou a cabeça em negativa suavemente. — É uma pena, então. Eu pensei que você gostaria de ficar por aqui. Sua irmã vai seguir sua jornada pelo continente de Kanto.





— Mas- mas — Se levantou para seguir a mãe que quase deixava o seu ambiente e a segurou pela roupa. — Por que ela pode ir sozinha e eu não?! Isso é injusto!





— Porque ela é sua irmã mais velha e já tem idade mais do que suficiente para que inicie sua carreira como- como treinadora Pokémon, eu acho. — Apesar de ter começado firme e forte na resposta, até mesmo o senso materno de Caroline titubeou nos últimos segundos.





— Mas isso nem faz sentido! — Contra-argumentou, um bocado revoltado.





É, mas parece que ele se esquece sobre qual universo estamos nos tratando. — A voz do diretor, Pether Morgenstern, invadiu o recinto. — ... Ah, porcaria. Esse negócio 'tava ligado! Continuem gravando!




Caroline apenas o lançou um verídico e incontestável olhar de mãe, visto que sua autoridade não se abalaria pelos argumentos de seu próprio filho que poderia ter maturidade para descrever uma enciclopédia Pokémon sem pestanejar, mas que, ainda assim, era uma criança.





— Tá bom. Tá bom. — Se deu por vencido. — Posso ao menos pensar um pouquinho no que disse?





— Hm, claro. — Sorriu, compreensiva. — Mas acho que você poderia aproveitar a oportunidade e acompanhar a sua irmã de volta para casa. Ela já deve estar no laboratório.





— Credo. — Mostrou a língua, só de pensar na hipótese. — Eu tenho é pena do Professor Carvalho. É mais do que claro que a May não tá nem aí para os Pokémon. Como ele pôde dar um Pokémon para ela?





— Max! O que eu te disse sobre julgar os outros?





— Nunca julgue um livro pela capa. É, eu sei. Esse ditado é bem manjado. — Deu de ombros. — Aquele cara só faz vídeos a respeito disso. Como era mesmo o nome dele? Mhar Dann?





— Pois então você deveria aprender mais com ele. — Adiante, prosseguiu mais alguns passos a fora do quarto. — Ah, você pode aproveitar que está indo ver o Professor e me fazer o favor de entregar um pequeno pacote para ele, o que acha?





A ideia não era tentadora, ainda mais por envolver a sua irmã como prioridade, todavia, poderia conversar um bocado com o Professor Carvalho que, diga-se de passagem, era um de seus melhores amigos quando o assunto era descobertas e novidades do mundo dos Pokémon — não que tivesse muitos amigos, inclusive. Poderia amenizar o sofrimento com um pouco de conhecimento, o que sempre era bem-vindo.





— Tá legal. Aposto que você já deve estar com- com o que é mesmo?





Em cerca de segundos, Caroline seguiu e retornou de seu quarto com uma pequena caixa bem lacrada e muito humilde. Devia ser só mais um embrulho de alguma receita caseira, como era de costume de sua parte, cogitou o caçula dos Mapple.





— E diga a ele que eu mandei um abraço, tá bom?





— Uhum. — Assim que pegou o pertence, tratou de zarpar em direção à escadaria, se não fosse interrompido por outro chamado de sua mãe.





— Ei. Não vai se despedir de sua mãe? — Seus braços abertos o convidaram para um abraço.





Sem pestanejar, o garotinho retornou às pressas ao gesto amoroso de Caroline, com um sorriso bobo e genuinamente infantil. Ficou ali por alguns segundos, talvez pensando no que seria de sua vida ao lado da sua irmã, caso topasse a única oferta mais generosa de sua vida, ou apenas tinha deixado de martirizar sobre qualquer coisa para que aproveitasse o carinho de sua mamãe.





— Se cuida, hein? — Assim que se desvencilhou do garoto, tomou nota com prontidão e seriedade na voz.





— É capaz de eu chegar mais rápido do que a tapada da minha irmã até lá. — Por fim, saiu correndo e rindo, antes mesmo que a mulher pudesse bronqueá-lo mais uma vez por mau comportamento. Foi por uma boa causa, poderia justificar mais tarde. — Oi, pai! — Se reencontrou com Norman subindo os degraus, mas não fez nenhuma cerimônia ou pausa até deixar a residência.





— Nossa. — O homem exibiu uma face impressionada. — O que você deu a ele?





— Uma surpresa e tanto. Isso eu posso garantir. — Riu de leve.





— Hm, então isso quer dizer que — Evitou de completar, especialmente por compreender o olhar da esposa.





— Sempre dissemos que nosso garotinho está crescendo tão rápido. — Suspirou, com uma feição agradecida. — Temo ter que corresponder a isso nessas circunstâncias, mas acredito que vai valer à pena.





— Não se preocupe, querida. — A consolou com um abraço entre os ombros. — Vai dar tudo certo.





— Espero que esteja certo. — Vagarosa, a mulher descansou a cabeça em seu marido.





— Quem vai encher os balões?





— Acho que não teremos balões esse ano. Ele diz que está velho demais para essas coisas. — Certificou de provocar certa ênfase na idade tão avançada do filho.





— Pff. Tá bom.













E assim, encerra-se o nosso capítulo de hoje. Prestes a chegar no prestigiado e tão referenciado Laboratório do Professor Carvalho, May acabou cruzando caminhos com Ash e, apesar dos mesmos propósitos, este primeiro encontro não soou às mil maravilhas. Em contrapartida, as péssimas notícias para Max parecem frutificar em algo que cabe somente a ele dizer o futuro resultado dos eventos colididos com o seu destino. A partir de agora, a jornada destes três heróis parece estar mais próxima do que nunca.





E A JORNADA CONTINUA...

PUBLICAÇÃO ORIGINAL em 23/05/2022





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