Capítulo IV | Five










As expectativas para uma viagem transbordada de sonhos não podiam suprimir perante às emoções de cada um. No entanto, nem todos os fatores podem correr como o planejado, seja um empecilho na viagem ou uma sequência de acontecimentos negativos.





Com Yuuta, não foi diferente. Ainda assim, não bastando o mau tempo estacionado em sua cabeça devido ao egoísmo e a descentralização de seus objetivos, o garoto não se intimidou mesmo com a nítida falta de empatia com os seus companheiros.





Até que ele se depara à frente de uma viagem que poderia ser definitiva para toda a sua vida.













ATO 1: PROLOG(A)MENTE





Sim. Sim. A gente acabou de chegar! — Um tanto animada, a voz de Ayane ressoou com descrição. Olhou para trás e conferiu que não havia ninguém próximo da cabine telefônica.





Os cabelos castanhos em um corte um pouco mais curto do que o habitual — e um tanto repicados em suas pontas — e o lenço vermelho delicadamente amarrado em seu pescoço que, por sinal, dispensava o desconforto do seu querido cachecol — pudera, em plena primavera —, sem dúvidas, preservavam a identidade da mocinha que, agora, podia se considerar uma treinadora de Pokémon.





— E como ele está? — A voz do outro lado não escondeu sua ansiedade. A senhora Kazami parecia tão bem como sempre, contestou Ayane com um sorrisinho abafado.





— Está bem. — Apesar do tom de certeza, deixou-se levar com um suspiro quando o encarou mais ao longe. — Talvez fique um pouco melhor por ter voltado pra cá.





Ao lado dos demais companheiros, aparentava a mesma normalidade. Ainda que fadado apenas a um comentário ou uma expressão sem muito interesse na conversa ou brincadeiras dos outros, a garota pôde compreender — em partes — os seus motivos. Foram quase seis meses desde suas partidas da cidade de Goldenrod para o continente de Kalos, o que pareceu o lugar ideal para o início da jornada do quinteto.





— E como vocês estão? — A indagação persuadiu com a entonação maliciosa que Ayane cogitava, porém não desejava.









— Bem, a gente — Mordeu os lábios por um segundo e, em seguida, tornou o olhar ligeiramente abatido de volta à sua mão que se apoiava na cabine. — Ele- nós achamos melhor sermos apenas-





— Eu entendi, meu bem. — Replicou em um tom acolhedor. — O cabeça-dura do meu filho não facilitou muito as coisas, não é mesmo?





Ayane não se considerava um marco exímio no quesito relacionamento e sequer tinha tanta profundidade em questões amorosas para que pudesse concordar o suficiente com a senhora ao outro lado da linha, embora tenha sido a sua vontade. Seria injusto culpá-lo integralmente pelos desandares no decorrer de tão pouco tempo para dois adolescentes inexperientes que tiveram um trecho de suas vidas um bocado mais do que conturbado.





— Acho que todos somos uns cabeças-duras, senhora Kazami. — Riu de leve, talvez como um refúgio para ofuscar o palpitante desejo de lacrimejar.





Seu tom lastimoso entregaria o que tanto remoeu nesse meio tempo para a mulher que, inclusive, entende o seu — a partir de agora, devia se acostumar com o termo — ex-namorado mais do que qualquer outra pessoa. Era evidente que ela a compreenderia também, mesmo que uma parte de si relutasse a pedir ou aceitar por compaixão ou piedade das pessoas ao seu redor.





Se considerava tão superior e madura perante o seu companheiro, tal qual suas ações contrariavam o que foi premedito por sua mente atribulada e magoada com a situação. Tão crescida e, simultaneamente, cedendo às primeiras lágrimas involuntárias por suas bochechas um tanto avermelhadas.





— Ei, não chore, tá bem? — Sussurrou a outra voz. — Podemos deixar isso para outra ocasião. Quando se sentir melhor, talvez— É interrompida.





— N- Não. Seria muito injusto. — Tratou de secar o rosto o mais depressa possível. — Vai ser divertido, além do mais.













O movimento da Estação Ferroviária Intermodal da Cidade de Goldenrod prosseguia em seus conformes, mesmo que não estivesse na alta temporada. A correria de alguns passageiros, as badaladas das sinetas dos trens prestes a partirem e o fumacê incessante entre os trilhos conservadores das centenárias locomotivas não se fizeram ausentes em meio ao quarteto que aguardava pacientemente o término da ligação da parceira de viagem. Ou talvez, nem todos.





— Será que ela vai demorar muito? — Pelo êxtase negativo na voz de Yuuta, nem mesmo o mordiscar de seu Croconaw em sua mão o incomodava diante da bolha de tédio em que se concentrava.





— Ela tá lá não tem cinco minutos, na verdade. — Pontou Neil após contestar o seu relógio de pulso.





— Seja lá com quem está falando, deve ser muito importante. — Anne sabia como desviar assuntos na medida do possível, embora camuflar outras propriedades não era bem o seu feitio.





De qualquer forma, o rapaz desamarrou o casaco vermelho de sua cintura e o depositou sobre um assento ao lado, sem muita preocupação sobre o estado amassado da peça. Além disso, a luta para reconquistar o seu braço tomado pelas presas do Pokémon crocodilo bastou em um movimento brusco de retirada.





— Eu só queria ir para casa. — Bufou, transparentemente desanimado.





— A gente não devia, sei lá, comer alguma coisa em algum lugar como fazíamos nos velhos tempos? — Sugeriu Kai com um sorriso, do típico, animador.





— “Velhos tempos”? — O garoto de óculos arqueou uma das sobrancelhas. — Estamos em jornada há menos de um ano.





— Pode ser divertido. — A menina reforçou a ideia do garoto de Alola com o gesto correspondido na mesma medida. — O que acha, Yuuta?





— Ah, eu tô cansado. — Murmurou em uma expressão azeda. — Podem ir vocês, eu só vou esperar a Ayane para— Antes que finalizasse, pôde avistar a referida retornando ao encontro de todos. — Ah, até que enfim!





— Desculpem a demora — A moça de cabelos curtos se apresentou com um questionável e solícito sorriso. — Minha mãe queria que eu narrasse tudo o que aconteceu desde que parti. — Por outro lado, a capacidade de esmaecer uma verdade sob uma mentira bem contada não era mais do que uma simples façanha para Ayane.





— Bom, pode ser que o voto dela mude a decisão do nosso querido Yuuta! — Exclamou Kai, assim que tornou a encarar aquela que o devolveu um olhar confuso perante a situação.





— Burger Slow’King, ele quer dizer. — Neil a ajudou se situar no contexto da equipe com palavras breves e um tom simplório.





— Ah, eu— Antes de responder de prontidão, Ayane certificou de uma análise rápida sobre todos os semblantes que recaíram sobre o seu próspero posicionamento.





Era válido ressaltar que a empolgação abrangia a parte de Kai, talvez repartida para Anne, enquanto Neil parecia ser o tipo de cara que “tanto faz” era uma boa alternativa, ainda que topasse grande parte dos compromissos ou passatempos arquitetados pelo grupo sem pestanejar — a menos que fosse tão esdrúxulo quanto sem nexo possível — e, por fim, a exaustão um tanto forçada de Yuuta que, de certa forma, reafirmava os votos de que seguiria para seu lar e se afundaria em sua cama.





— Acho que é uma boa ideia. — Finalmente inquiriu com um pequenino sorriso que se desfez em reles segundos.





— Sério? — O dono do Croconaw a encarou com uma expressão que enfatizasse, com incredulidade, a sua pergunta.





— Ela tá certa — Anne interveio com moderada pacificação em seus gestos. — Você tem andado muito estressado, Yuuta. Pode ser legal descontrair um pouco com a gente em uma cidade que você conhece como a palma da sua mão. — Sorriu.





— Descontrair? — Repetiu ao elevar o tom da voz em alguns oitavos. Exasperou as mãos pelo rosto e se levantou.





Pela expressão vociferante e intrigante do rapaz, por muito pouco que não diria umas boas. Pudera, com o histórico sobrecarregado de derrotas em tantas batalhas proferidas no continente de Kalos — sem mencionar o término de seu relacionamento mais longo, por assim dizer —, poderia apontar os erros com base na falta de sorte da localização, mas não era bem assim que a coisa fluía em sua concepção. O fracasso estava em algum detalhe que estava deixando passar ou que não havia sido esclarecido o suficiente para tanto — o que, por consequência, o deixava tão furioso quanto desgastado.





— Eu não tô a fim de descontrair. — Espreguiçou-se e manteve as mãos sob a nuca. — Por que não vão vocês?





— Porque, sem você, não vai dar para fazer trocadilhos e zoar o seu nome. — A resposta de Kai saiu quase que direta para a surpresa de todos. — Ér- digo, por que somos um time, certo?





— Isso nunca foi um problema para tirarmos uma com a cara dele sem a presença dele. — Enfatizou Neil ao dar de ombros.





— Ele tá certo. — Ayane completou com um ligeiro ar repreensivo. — Ficamos incompletos sem qualquer um de nós aqui. O que inclui você também, idiota.





Ainda que contrariar a unanimidade fosse um requisito que Yuuta cumpria com determinação, apenas bufou em resposta que, ao certo, pareceu uma afirmação — ou talvez apenas tenha cedido por falta de alternativas.





— Bem, então podemos ir, certo? — Anne sinalizou para a saída da estação com um sorriso ansioso.





— Hã, será que eu— A julgar pela inquietação e a expressão desgostosa, o pedido de Kai soou óbvio para os ouvidos alheios. — Eu acho que nunca fui no banheiro daqui e-





— Vai lá. — A mocinha ruiva revirou os olhos com ligeira graça. — Antes que isso acabe te matando.





— Nesse caso, acho que eu vou — O rapaz de óculos direcionou a atenção ao espaço reservado às cabines telefônicas. — Avisar aos meus pais que estou inteiro e de volta a Johto.





— Muito bom saber que seus pais aceitaram a sua jornada, Neil. — Para compensar a negatividade do outro sujeito, Ayane desviou seu foco para a ligeira positividade imposta no tom incerto do amigo.





— É, bem- aceitar não deve ser o termo correto. Deve ser mais uma “tolerância”, eu diria. — Contestou após ajeitar os óculos em seu rosto.





— Você mesmo disse que eles te buscariam até no inferno caso precisassem — Anne riu de leve. — Acho que eles confiam em você o bastante para isso, não é?





O jovem Campanella não poderia discordar totalmente da objeção que o favorecia nesse meio tempo, ainda que percorresse um resquício de dúvida perante o caráter ou a integridade efetiva de seus pais como deveriam atuar. Se, por um lado, sua vida se baseou em uma falsa sensação de privilégios por conta da privação de liberdade, não poderia desmerecer por completo que ainda recebeu o carinho essencial por parte de sua mãe, em partes, — visto que seu pai era um homem muito ocupado e ele mesmo fazia questão de enfatizar isso tantas e tantas vezes. Do outro lado da moeda, no entanto, uma pequena parcela de seu semblante preocupado — o mesmo que encarnou a ideia de contatá-los — ainda se sentia na obrigação de estabelecer algum laço ou vínculo familiar, por mais que não fosse obrigado.





— Talvez. — Neil acabou por aceitar os argumentos da parceira com um levíssimo sorriso que entregou sua falha de discordá-la.





Enquanto a conversa fluía sem a intenção de praguejar o tempo indeterminado do retorno de Kai — o que, em algum ponto, alguém concretizou a ideia de que poderia estar se expressando de um ideal estético através de uma atividade criadora ou, no perdão da palavra, de arte — pôde se notar que os embalos do trem em decorrência das longas horas de viagem proporcionaram o sono perfeito para Yuuta — em último caso, poderia ser apenas exaustão. Ainda que cedesse contra a vontade de fechar os olhos e com a implicância de seu Croconaw ao lado, se pegou quase pendendo a um ou outro lado da cadeira.





Não importava o que distinguisse seu cansaço físico ou mental de sua batalha contra o ardume de seus olhos que quase se esfarelavam ao prazer de serem fechados por completo, cruzou os braços e acalentou, pela primeira vez desde que desembarcara, uma expressão fadada ao aconchego. Talvez a comida de sua mãe o reanimaria mais do que o necessário. Só de pensar na mesa cheia provinda de uma imaginação e um talento culinários de outro mundo, traria água na boca.





Seus devaneios saborosos não perduraram por muito tempo, quando levou um solavanco que praticamente quase o arrastou do assento até o chão. Quando se deu por conta, percebeu que seu moletom vermelho não estava mais em sua cintura e, mais à frente, Croconaw corria feito um condenado com a vestimenta cravada em sua mandíbula.





— Ei! Volta aqui, Croc! — Tratou de se levantar no mesmo instante.





À medida que o seguia, pôde sentir que estavam entregues à solidão para todo o perímetro que se correspondia à estação. O que, mesmo que seu foco estivesse concentrado essencialmente na busca por seu Pokémon inquieto, soou desconcertante e inviável. Não havia cochilado nem cinco minutos e praticamente todos se foram. Ninguém seria tão desalmado a ponto de abandoná-lo — ainda mais os seus amigos — após trancarem as portas do recinto.





— Croc! — Resolveu alavancar o tom da voz. — Para! Espera!






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O caminho parecia tão extenso do que poderia se recordar e, além disso, havia tantos trens — mesmo que alguns estivessem em movimento, aparentavam estar abandonados — intercalados e com todas as luzes acesas das cabines. Estava incrédulo com o vozerio e as sombras de uma multidão aos risos a cada vagão que percorria o seu campo de visão que chegou a se questionar se absolutamente ninguém se sentia incomodado com o fato de um crocodilo azul e babão percorria loucamente a passarela rente ao vão dos trilhos ferroviários.





— Croco-naw! Croc’onaw! — O bramido do crocodilo soou com uma ponta de pressa e, acima de tudo, confidência.





Por alguma razão não aparente, o pequenino braço da criatura bípede seguia apontando — sem dispensar a corrida — a um enorme pilar de ladrilhos. Nele, um impiedoso relógio de pêndulo ressoou com uma devastadora magnitude o ¼ de sua badalada melodia ao exato marco das dez horas e quinze minutos.





— Croco-rawr! Naw! — Atribulado à ressonância dos sinos, o Pokémon do tipo aquático atribuiu mais velocidade em suas patas traseiras. — Croco’naw!





— O que deu nesse maluco, afinal? — Ironizou o rapaz, descrente com a situação, sem deixar de correr (ainda que ostentasse de um fio de cansaço).





O caminho se tornou estreito devido à escuridão iminente. Um tanto sufocante, mesmo sabendo que nada de consistência material o impedia de traçar outra rota. Além do rastro deixado por seu Croconaw que quase desaparecia de suas vistas, apenas tinha consciência das locomotivas a todo vapor aos seus arredores pelo manejar dos condutores. Não sabia afirmar ao certo se estava em uma realidade distante e fragmentada a ponto de visualizar o seu, outrora, Peste tão atento e ciente das horas. Sequer tinha noção de que já havia anoitecido ou amanhecido, para falar a verdade.





— Ei! — Outra voz, pouco distante, chamou a atenção do jovem Kazami. — Espere!





Se Yuuta tinha descrenças e pretendia desmitificar lendas e contos que carregava em seu tempo de vida para o futuro, perdeu as credibilidades quando avistou, à direita e numa distância equivalente a uns quinze ou vinte metros, um pequeno Pokémon coelho-branco, saltitante e tão apressado quanto Croconaw — a espécie, não reconhecia mas acreditava ser de alguma região que não havia pesquisado — ainda mais por carregar um relógio de bolso inquieto e dependurado em sua patinha superior. A quem o seguia, uma garotinha tão loira quanto a luz ao fundo daquele túnel esquisito, um vestido azul e branco que se estendia até o joelho, enquanto meias brancas e sapatos pretos preenchiam o restante.





Só não questionou a respeito do que estava acontecendo pois havia perdido o seu companheiro de vista. Além disso, uma corrente esfumaçada ao lado — o mesmo que avistou a mocinha, o que atribuía menos sentido à cena — logo tratou de revelar o intenso frear de uma maria-fumaça, tão centenária quanto belissimamente conservada. O estilo da era clássica incorporou com fervor no aço vermelho dos vagões e nos detalhes minimalistas em dourado, ainda que não tivesse ciência total de como era o trem em si.





Decidiu apertar o passo quando enfim a locomotiva parou por completo. Eventualmente, checava suas costas e ficava perplexo com a infinidade de vagões destinados a um só trem. Ousou cogitar que não havia fim, dado que nada ali estava fazendo sentido até então.





Quase entregue à fadiga, arfando um tanto, avistou o começo da fila de vagões. Com isso, avistou uma luz opaca, provinda de uma lamparina em um único poste, que parecia ser mais um ponto de referência do que um sistema eficiente de iluminação. Mal reluzia um círculo sobre o chão enevoado, quem dirá o resto.





— Mas o que— Evitou de completar. Observou a presença de alguém à frente do primeiro vagão de passageiros. Deveria ser o bagageiro ou até mesmo o próprio maquinista.





No corpo da locomotiva, determinada como Baldwin, o pistão de vapor e a chaminé ainda descansavam após a parada com uma vertente questionável de fumaça exalando de suas construções. Em sua lateral, grifada de aço escovado com uma caligrafia elegante, a denominação do modelo e a linha pretendida pelo veículo.





Expresso 2107.













ATO 2: TODOS A (B)ORDO





Ainda que um bocado cansado e ofegante, Yuuta não abandonou a ideia principal de que necessitava encontrar o seu Croconaw e se mandar dali o mais depressa possível. Apesar de que a atmosfera não ostentava de nenhum perigo eminente, um ar peculiar percorria desde os cabelos levemente eriçados ao encontro do pescoço do menino até ao ponto de provocar um comichão esquisito em seus polegares. Além do mais, quando se deu por conta — após se recompor por completo — percebeu que o comissário de bordo o encarava com firmeza. Não soube distinguir o semblante, mesmo com a ajuda da luminária, por conta da densa neblina que persuadia o ambiente que aparentava ser infinito.





— Ei. Garoto?





O chamado foi amistoso, então Yuuta não teve outra oportunidade a não ser se aproximar do sujeito engravatado e, diga-se de passagem, muito bem aplumado diante da locomotiva. De certo, era uma linha da primeira classe ou somente para executivos do alto escalão de alguma companhia muito importante, não soube premeditar apenas com a nobreza e a elegância no vestir do sujeito.





— O que está fazendo aí fora? — Questionou assim que, do bolso, retirou um grampeador. Este, um tanto exótico, banhado à prata e com uma infinidade de selos colada em seu corpo. — O embarque encerrará em dois minutos!





O rapaz não estava necessariamente prestando atenção nas palavras do assistente. Na verdade, havia alguma coisa que o imergia em uma sensação estranha. De alguma forma, se sentia muito próximo àquele senhor que nunca viu sequer pintado de dourado em sua vida. Uma presença acolhedora através de sua paz de espírito, para ser sincero, atravessava o vínculo com o desconhecido que, apesar de tudo, nutria alguns aspectos físicos muito semelhantes aos seus.





Apesar da idade na casa dos sessenta ou setenta anos, os cabelos castanho-grisalhos — talvez um fio ou outro em tonalidade castanha — penteados em sinuosas franjas, apesar de falhas, bem características ao que estava fadando todos os dias, principalmente por não se familiarizar muito bem com pentes — o toque com as mãos o satisfazia para os seus critérios de beleza e organização capilar, de certo — e, acrescentado a isso, os olhos escuros que, de maneira indireta ou não, transmitiam o cansaço da idade que se conjuntava com o agradecimento por mais um dia de vida, apesar dos pesares. Tinha certa familiaridade por aquelas olheiras abastadas pelo tempo que pareciam ter muitas histórias proveitosas para contar.





— Garoto? — O comissário acenou de leve com a mão defronte à visão do menino.





— ... Hã, eu— Chacoalhou a cabeça a fim de se retirar dos seus conturbados, contudo promissores pensamentos. — Não, na verdade, eu estou procurando o meu Pokémon e- o senhor não viu passar por aqui um Croconaw desengonçado, barrigudo e com uma cara feia que combina com o resto?





O senhor segurou uma breve vontade de rir na presença da preocupação exacerbada com gestos do menino para reafirmar o carinho tão notório — mesmo que controverso — para o seu Pokémon.





— Não se preocupe com ele, garotinho. Tenho certeza de que ele está num lugar seguro e voltará em breve. — Em seguida, checou as horas em seu relógio de bolso. — Sugiro que me acompanhe nesta locomotiva.





— Mas eu- o Croconaw — Suspirou com força assim que encarou o olhar do homem à sua frente. De algum modo, repassava a segurança a respeito da criatura desordeira que tanto penava para adestrar e, acima de tudo, treinar. Parecia até que o conhecia melhor do que ele mesmo que, inclusive, era o seu dono. — Como sabe que ele está bem?





— Eu fui amigo de um Totodile por um bom tempo. — Disse, com um tom nostálgico. — Ah, com certeza. — Riu de leve. — Não nos topávamos nem por decreto. Aquele pestinha.





— O que o senhor fez para que ele te obedecesse? — Yuuta perguntou quase almejando a resposta no mesmo instante.





— Ah, é uma longa história. — Devolveu o olhar singelo e positivo ao menino. — Você pode conhecê-la, basta embarcar — Tão logo, indicou, com a cabeça, à porta da cabine do vagão.





Por fim, se deu por vencido. Ainda que não tenha obtido um paradeiro concreto de seu parceiro e sequer sabia onde estava, não correu muito longe da estação ferroviária anterior que bem reconhecia, apesar de que, a partir daquele momento, nada estava fazendo sentido. Quem quer que fosse que acomodou uma ferroviária tão distante da outra deveria ter o seu diploma de engenheiro confiscado. Sem mais, acatou ao pedido do comissário de bordo e seguiu rumo aos degraus preenchidos por um pomposo carpete.





— Espera, para onde estamos indo, afinal? — Antes de pisar no último degrau, se virou de imediato ao senhor, o que quase lhe rendeu um desequilíbrio ao ponto de se espatifar ao chão.





— Cuidado onde pisa, senhorito Kazami.





— Como sabe o meu nome? Ei! — Exclamou, assim que a porta se fechou atrás do comissário. — Eu tenho direito de saber alguma coisa aqui!













Sem qualquer resposta, Yuuta foi conduzido para a próxima cabine. Mesmo com o conforto e a luxuosidade do vagão, ainda estava insatisfeito e, por que não, inseguro com toda a situação? Primeiro, seu Croconaw desaparece em um lugar cheio de lunáticos e coisas esquisitas acontecendo. Segundo, seus amigos ainda sequer tinham dado falta dele depois de tanto tempo. Belas amizades, inquiriu assim que pousou a cabeça com exasperação ao conforto da poltrona tão macia que, por um instante, se esqueceu dos problemas corriqueiros e de longo prazo. Terceiro, apesar da simpatia afinada e do aspecto familiar do comissário de bordo, ainda não tinha cem por cento de certeza se deveria confiar sua vida entregue a um trem que, aparentemente, não havia mais ninguém embarcado.





Vez ou outra, se espichava, através do assento com passagem ao corredor, com a curiosidade batendo a mil a fim de certificar de que conseguiria ver ao menos uma alma transitando pelas demais cabines, já que avistou tantos vagões ao lado de fora. A única coisa que obteve, constantemente, foi o tintilar moderado das rodas da locomotiva em atrito com a linha férrea, além de eventuais picos de fumaça da chaminé quando buzinava de forma intensa — o que era estranho, ainda mais quando não conseguiu visualizar nenhuma parada ou cruzamento até o presente momento.





A julgar pelas horas, podia estar em casa, no conforto de sua cama, livre de tudo e de todos. Apenas a sua mente e seu corpo conectados por uma doce maré de aconchego pelo vazio. Sem ninguém. Sem cobranças. Sem pressão. Sem derrotas. Sem dor ou arrependimentos.





— Parece um pouco aflito, garoto.





Claro que o sujeito apareceria de forma tão sorrateira e misteriosa quando estivesse em seus devaneios. Desencostou o cotovelo do parapeito da janela e o encarou, sem ânimo para responder algo passivo ou ofensivo. Apenas concordou com o silêncio.





— As coisas não têm sido fáceis, não é? — De forma lenta e generosa, caminhou até o jovem Kazami e se ofereceu a sentar na poltrona ao lado. Assim que aconchegado após alguns resmungos e gemidos por conta da idade avançada, esboçou um terno sorriso.





— Eu pensava que a ideia de partir em uma jornada Pokémon seria a melhor coisa que já pensei. Acho que me enganei – e muito! — Bradou, de uma só vez, com os nervos estampados à flor da pele.





— Por que diz isso? — Inquiriu, paciente e observador, tanto nos trejeitos do garotinho quanto em sua honestidade tão agressiva e súbita que, com certeza, estava impregnada há um bom tempo e necessitava de uma válvula de escape.





— Por quê? Eu te digo o porquê. — O encarou, com uma inquietante frustração cravada em seu olhar. — Eu tive tantas derrotas que mal posso contar agora! A maioria das coisas que esperava que acontecesse não aconteceu e, se aconteceu, foi da pior forma possível!





— Entendo.





— Eu tive uma namorada que só serviu para me dar ainda mais dor de cabeça! E olha que ela deveria me apoiar, não é mesmo?! — Riu de forma nervosa e irônica. — Assim como os meus amigos, ou até mesmo os meus Pokémon que, ah, é! Um deles preferiu sair correndo de mim!





— Perfeitamente.





— O pior é que parece que todos não devem estar nem aí para os meus problemas! — Suspirou. — Até parece que eu não me importo com todos da mesma forma que importo comigo mesmo!





— Compreendo.





— Às vezes, seria mais justo se eu nem tivesse nascido ou, melhor ainda, não tivesse recuperado a minha memória!





— Hm.





Abafado por tanta descarga suprimida de raiva e incrédulo com a indiferença dos comentários tão dispensáveis do senhor ao seu lado, o dirigiu a atenção com tamanha descrença.





— Eu nem sei por que estou falando disso com você, afinal! É só mais um que está pouco se lixando para os meus problemas!





— Pelo contrário, Yuuta. — O estendeu a mão. Um ligeiro trêmula, mas se manteve firme até que ele a apertasse. — Eu, mais do que ninguém, me importo com os seus problemas.





Ainda que desconfiado e irritado, optou por não deixar o comissário no vácuo. O cumprimentou com um uso mediano de força e, acima de tudo, questionou, pelo olhar, o que seria de sua parte após a sua desgostosa confissão a respeito de memórias não tão distantes.





— Eu já sabia o que estava passando — Dada a plenitude no tom de voz do velho, os olhos de Yuuta se esbugalharam de incredulidade. — Mas acredito que foi bom se livrar desse fardo em sua mente, certo?





— Como o senhor sabia disso tudo?! — Elevou a voz em alguns oitavos. — Eu sequer te conheço, nunca te vi na vida e- e- eu-





Enquanto praguejava sem tréguas, os lábios do menino foram se contraindo em constantes tremulações a partir do momento em que o comissário, de forma despreocupada e um pouco inconstante, abotoou o seu crachá no posto pertencente ao terno, ao lado direito de seu peito. Folheado a ouro, restritamente conservado e com uma gravura impecável sobre o material reluzente, seu nome impresso em caligrafia artística. Yuuta Fukuda Kazami.





— Ma- Mas o que- o que é isso? — Indagou, pálido como uma folha de papel.





— O quê? Isso? — Se referiu à sua indicação. — É um crachá produzido com— É interrompido.





— Eu sei o que é isso, só que- que- é uma pegadinha, né?





— De forma alguma.





— Tá legal, vovô. Onde quer chegar com isso? — A pergunta partiu com o semblante cerrado por parte do rapazinho.





— Não sou eu que vou chegar, e sim você.





Não importava o que indagasse ou o quanto poderia pensar em ameaçá-lo, aquela figura sorridente e animada — que, no perdão da palavra, afirmava ser ele mesmo (a menos que fosse uma coincidência exponencial de encontrar alguém com os exatos nomes e sobrenomes pertencentes à sua identidade) — não se deixava abalar por qualquer coisa e, no final das contas, se a teoria idealizada por sua imaginação — por mais desequilibrada que estivesse à essa altura do campeonato — estivesse certa, o melhor a se fazer era ouvi-lo que, em algum momento, despertaria desse pesadelo.





— Eu ainda não entendi. O que eu fiz para merecer isso?





— Não se preocupe, Yuuta. — Se levantou, com um pouco de auxílio ao se apoiar no braço da poltrona. — Você não está delirando, muito menos imaginando coisas.





— Se eu sou você, ou você é eu- ah, isso não faz sentido! Como podemos estar aqui? Frente à frente? Hein?





— Eu explico. — Sorriu. — Esse é o trem do seu destino. Da sua vida.





— Ah, é? E por que você está aqui, então? Não deveria ser eu no comando?





— E você está.





— ... O que eu quis dizer é que- Desistiu, assim que estrebuchou a palma da mão pelo seu rosto.





— Bem, eu — Antes que prosseguisse, checou o relógio mais uma vez. A expressão satisfatória premeditou a pontualidade do próximo evento, em sua concepção. — Ah! Chegamos bem na hora!





Não tardou muito para que ambos sentissem o impacto do início do frear da locomotiva, além da densa quantidade de fumaça provocada ao exterior, o guinchar das hastes mecânicas contra as rodas e o desacelerar suave do maquinário à medida que, ao lado direito das janelas, feixes de luz cumprimentavam e despediam à face dos viajantes. Pela primeira vez desde então, Yuuta acreditou que aquela imagem era a construção real de outra estação ferroviária — e das grandes, por sinal.





— Chegamos? Onde? — Arriscou na questão, ainda temendo que a resposta seria enigmática ou nada conclusiva.





— Você vai ver. Venha comigo. — Sinalizou com a mão e prosseguiu ao corredor.





Pouco mais de quarenta segundos e o intitulado Expresso 2107 descansou à posição esperada de seu portão para a estação. Os pistões e freios descansaram com demasiado gozo com uma pesarosa baforada de vapor após a inércia total. Assim que a porta da cabine se abriu, o comissário de bordo ajudou o garotinho a descer até o novo ambiente.





O jovem Kazami não reconheceu nada pelo perímetro na primeira observação, então era de se esperar que retornaria à estaca zero quanto ao seu Croconaw ou, simplesmente, para ir embora dali o mais rápido possível. Assim como o outro lugar, não havia outra pessoa com que pudesse comunicar as maluquices que estava enfrentando. Diferente de antes, a claridade natural consumia o recinto sem muitas dificuldades e a neblina não era um fator tão preocupante ou incômodo para os seus olhos.





Por conseguinte, conseguiu avistar, não muito distante de sua posição, outro trem ao outro lado da estação. Estava na rota contrária e aparentava ser da mesma linha de modelos da locomotiva atrás de si. O previsível seria que tivessem que embarcar neste trem a partir de agora.





— É para lá que a gente vai agora? — Sem estresse ou arrogância, Yuuta questionou como se já estivesse se acostumando com o fato de que teriam longas horas de viagem com paradas em diversos trechos.





— Sim e não.





O garoto o encarou com um semblante confuso e, ao mesmo tempo, incrédulo de cogitar que aquela figura destroçada pelo tempo e tão sorridente poderia ser a sua versão futura.





— Depende de você, na verdade. — Concluiu, simples. — Aqui será o seu último ponto de retorno. Mas não será com aquele trem.





— Então, eu posso escolher mesmo? — Soou com mais positividade do que o esperado.





— Exato. — Sorriu para o menino.





— Espera. Sem nenhuma consequência?





— Zero consequências.





Apesar de que fosse a pergunta mais objetiva que recebeu no dia, com duas respostas mais simples ainda, Yuuta pestanejou mais do que gostaria ao firmar os lábios e a feição para confirmar o seu desejo. Quando estava prestes a dizer algo — que, de certo, ainda não era a sua conclusão — ouviu uns burburinhos vindo do outro trem que avistou à frente.





— Eu já falei que preciso ir no banheiro!





Eu te disse para não exagerar naquela limonada sem limão, afinal de contas.





— O que— Assim que focalizou melhor, pôde reconhecer o sujeito cabeludo, barbudo e fardado, bem como o outro homem de sobretudo e chapéu pretos. — Ei, pessoal! Aqui! — Acenou com ambos os braços.





Da mesma forma como abandonaram a locomotiva, os dois sujeitos perambularam os seus rumos como se nada tivesse acontecido. Depois de um tempo, um deles cumprimentou, com um aceno e o abaixar do chapéu, o comissário de bordo.





— Ué, mas- por que eles não me responderam? — Retornou à atenção ao senhor.





— Eles não podem te ver e nem te escutar. Não se esqueça de que estamos coexistindo na mesma linha temporal.





— Ah — Revirou os olhos. — Já sei, já sei. O meu “eu” do passado não pode tocar o meu “eu” do futuro e vice-versa.





— Na verdade, isso é um mito. Quer ver? — Para a prova dos nove, batucou a cabeça do menino algumas vezes com o punho fechado. — Ninguém vai se desintegrar ou explodir graças a isso.





— Então, sobre a— É interrompido.





— Só um minuto. — Pousou a mão atrás da orelha, no intuito de remediar a sua audição um pouco danificada pelas décadas. — Ah, parece que ele já está chegando.





— Quem?





— Croco-nawr! — Não muito distante, o Pokémon crocodilo veio correndo na mesma intensidade de sua primeira fuga. O mais preocupante, no entanto, foi que não desacelerou suas patas à medida que se aproximava de seu dono.





— E- Ei, calma! Calma, Croc! — Tentando apaziguar os ânimos da criatura com gestos repetidos com as mãos, a feição de Yuuta registrou o desespero certo ao notar o exímio salto do Pokémon ao seu encontro.





A pancada atribuída ao peso exorbitante de quase vinte e cinco quilos só poderia render uma queda do jovem Kazami até o chão. Somado a isso, recebeu umas boas lambidas nas bochechas de seu parceiro inseparável — desconsiderando as horas vagas.





— Parece que ele sentiu a sua falta. — Riu de leve.





— É — Bufou, devido ao excesso de peso sobre o seu corpo. — Nem- nem parece que foi ele que, uff- saiu correndo de mim!





— E então? O que tem a me dizer? — O ajudou a se recompor. — Pretende ficar ou vai embora?





— Bem, eu — Retomou o olhar à locomotiva atrás de si e se estagnou, reflexivo. Se aquele era mesmo o trem que ditava o seu destino, por mais impossível que custava a acreditar, não teria por que negar um voto de confiança à sua futura versão. — É como manda o ditado, né? Agora que eu já ‘tô no inferno, dar um abraço no Giratina não custa nada.













ATO 3: O QUE VO(C)Ê FARIA SE VO(C)Ê
NÃO FOSSE VO(C)Ê?





O próximo trecho da viagem seguiu com um pouco mais de reconforto para Yuuta, não no melhor sentido, uma vez que o humor inconstante de seu Croconaw não colaborava para tanto. Questionou a si mesmo, inclusive, se chegaria até o final do trajeto com uma de suas mãos sem baba ou inteira, ao menos.





No entanto, todo aquele silêncio impertinente na trajetória embalante e sonolenta não estava ajudando. A contraparte de Yuuta não era exatamente o que ele imaginava após tantos anos, ainda que ostentasse de detalhes inconfundíveis e tão característicos. Talvez, era apenas um choque de realidade que qualquer um sentiria o mesmo gosto amargo na boca ou um nó atordoante no cérebro. Não podia, todavia, negar que estava um tanto impressionado com a ocasião e, também, decepcionado por estar abastecido de tantas perguntas que sequer seriam respondidas pela seguinte personalidade.





— Então — Mesmo assim, não poderia remoer a vontade de que tinha chance de questionar a respeito. — Que tipo de pessoa você- eu serei no futuro?





— Se eu te contasse — Coçou o queixo. — Ainda seria um segredo?





— Acho que sim? — Retrucou em dúvida. — Quer dizer, somos a mesma pessoa! Seria mais algo como estar falando sozinho, tipo assim.





— Você é esperto, garoto. Sempre se lembre disso. — Sorriu, o que, voluntariamente, rendeu uma face mais animada ao menino. — É uma pena que sua revolta com o mundo não consiga enxergar este e outros detalhes.





— Os meus amigos que não conseguem enxergar nada! — Reclamou, desfazendo qualquer semblante positivo. Encolheu as pernas e se atracou ao canto da janela, onde manteve o olhar desconcertado, porém fixo.





— É claro que eles enxergam. Por que você acha isso?





— Parece até que frases genéricas e motivacionais ou trocadilhos infames me ajudam muito. — Rolou os olhos. — Além do mais, de tempos para cá, eu me sinto deslocado ao lado deles!





— Já parou e pensou que o problema não esteja neles e sim em você?





— Como assim? Em mim? — Frisou, intrigado. — Nem pensar!





— Preste atenção no que disse, meu pimpolho. — Riu. — Você mesmo reclamou da falta de empatia de seus amigos e que até preferia retornar ao estado mais lastimável de sua vida. Sem lembranças. Sem ninguém ao seu lado que possa te fazer sentir o valor real de viver.





— Talvez eu tenha pegado um pouco pesado quanto à essa parte, mas — Fez uma breve pausa. — Tá vendo? É justamente sobre isso! Se meus amigos soubessem, um pouquinho que seja, o que enfrentei na minha vida, tudo seria diferente!





— É uma boa colocação. — Analisou com simpatia. — Apesar de que senti uma dosagem de egoísmo. Bem, sendo assim, não se preocupe.





O velho se levantou, o que deixou Yuuta com uma feição curiosa e indignada com a última colocação.





— Acho que eu não estou me reconhecendo mais. — Comentou, imóvel, de costas ao garoto. — Ou melhor, você não está se reconhecendo mais.





— Há. Acho que dá na mesma, não? — Caçoou de leve.





— Exato. — Se virou ao jovem Kazami. Carregado de um olhar estridente e lábios beirando ao sorriso. — O que você faria se você não fosse você?





— Tá legal. É outro de seus enigmas sem solução? — Cruzou os braços, descrente com o rumo da conversa.





— Não. Não. Não. — Realçou a negativa com o assentir da cabeça. — Me diga. O que você faria se você não fosse você?





— Acho que isso é bem simples. Ou eu não existiria ou seria outra pessoa.





Assim que disse, ambos sentem o breve calor das válvulas dos pistões de freio da locomotiva entrarem em ação mais uma vez.





— Mais uma parada? — Indagou, no mínimo interessado.





— Sim. A partir de agora, você conhecerá o real significado da palavra “empatia”. — Se encaminhou à porta.













Assim que abandonou o vagão, Yuuta foi recebido por uma estrondosa claridade dos raios solares, bem como uma refrescante brisa veranil — seus cabelos agradeceram com fervor, inclusive — que não aquietou um segundo sequer. Quase se sentiu em um paraíso, a julgar que sempre viveu em meio ao acometido ar poluído da cidade grande com a movimentação perturbadora de veículos e pessoas do mundo inteiro pelas ruas, avenidas, passarelas ou viadutos que carregavam tanta tonalidade cinza que tanto lutava a esquecer.





Diante da natureza, ao menos, esquivou suas memórias sem dificuldades. O balançar tranquilizante de tantas palmeiras à frente entrou em contato com a sua mente enclausurada pelo tempo de viagem trancafiado numa cabine — que soou eterno, inclusive —, o som das ondas se chocando com graciosidade ao fundo mesclou e ganhou força aos seus ouvidos sobre o carvão e as cinzas violentas em constante combustão para o trem, o canto de Pokémon pássaros que custava a reconhecê-los de imediato, mas que lhe trouxe a devida paz de espírito e, por fim, um vilarejo pacato — porém, aparentemente soava como a definição perfeita de recanto para o rapaz — onde desconheceu alguns moradores mais próximos de seu campo de visão.





— Onde estamos? — Se virou ao comissário.





— Ilha Melemele, no continente de Alola.





— Por que viemos para cá?





— Creio eu que aqui é a terra natal de um de seus amigos. Kai, certo?





— Ah, é mesmo! — Sorriu. — Ele ficaria muito feliz de estar aqui também.





— Kai! Espera!





Imediatamente, Yuuta tornou a atenção ao chamado. Não reconhecia a voz, tão pouco o homem, moreno, coberto de alguns panos apenas na cintura e com uma tiara de folhas na cabeça. Tardou alguns segundos para focalizar a direção do chamado, já que a figura corria com pressa, atrás de um garotinho que, após coçar os olhos, conseguiu certificar de que era mesmo o seu amigo. No entanto, havia rejuvenescido uns quatro ou cinco anos. Apesar do aspecto infantil, do corpinho mirrado em constante desenvolvimento e da pele queimada de sol, ainda não havia feito tantos dreads em seus cabelos — um tanto mais curtos, por sinal.





O menininho correu o máximo que pôde até se aproximar de uma caverna. O homem que o suplicava pela espera não atrasou muito. Em seguida, o passageiro e o comissário de bordo sobraram logo atrás, apenas como espectadores do ocorrido. Ao fundo do ambiente, onde a luz encontrava dificuldades para refletir, puderam ouvir uma sequência de coaxares, muito fina e um tanto sôfrega para se afirmar que estava tudo bem.





— Aqui, Pāpā! — Aflito, o pequeno Mansur se agachou perante a fonte do gemido de dor incomensurável. Os olhos escuros do garoto, tão desesperados quanto simpatizantes pelo tamanho do sofrimento do próximo, ansiavam para que o seu pai, a figura mais heroica que nutria para a sua idade, resolvesse a situação, custe o que custar.





— O que foi— Antes mesmo do homem questionar, se deparou com a razão da preocupação de seu filho. Entregue ao solo rígido e áspero, um frágil Poliwag com o corpo arranhado e bem desgastado. — Ke Akua! Precisamos ajudar ele, Kai!





Ke Akua

Do havaiano: Deus




Para o azar de ambos, a cauda cartilaginosa do pequeno Pokémon girino se encontrava aos destroços sob uma gigante rocha encrustada no paredão de pedregulhos. Um movimento em falso e acabariam por esfarelar o pobre e indefeso membro do Poliwag que, a julgar pelo tamanho micro, devia ter poucos dias de vida.





— O que estamos fazendo aqui parados? — Questionou Yuuta. — Devemos ajudá-los também!





— Não podemos fazer nada, garoto. — O impediu de continuar os próximos passos. — Assim como não podem nos ver ou escutar, não pertencemos a este tempo e muito menos podemos interferir em algo nele presente.





— Então, eu ainda não entendi por que estamos aqui. É para assistirmos o sofrimento do pobre Pokémon de camarote?





— Creio eu que não. — Gesticulou o rosto para a frente, no pedido de que retomasse à atenção ao ocorrido.





— Hnfg! Agora, Kai! — A voz quase inexistente do homem permitiu que seu esforço intrépido segurasse a maior rocha por míseros segundos.





Tempo suficiente para que a agilidade dos pequeninos braços de Kai trouxessem o frágil Pokémon ao seu colo improvisado. De forma gradativa, um sorriso de orelha a orelha se formou em seu rosto assim que percebeu que Poliwag se remexeu algumas vezes em suas mãos. Tão pequenininho que mal necessitava de ambos os braços para aconchegá-lo.





O menino devolveu o sorriso ao pai que, apesar de quase cedido à exaustão, confirmou que depositou o melhor semblante possível para a ocasião. Depois de alguns segundos, se aproximou do filho e, delicadamente, acariciaram a cabeça do Pokémon anfíbio com auxílio de apenas o dedo indicador para que, no mínimo, pudessem concluir de que estava consciente e bem de saúde.





— Como se chama, Pāpā? — Curioso e maravilhado com o despertar do Pokémon em suas mãos, mirou os olhos brilhantes à figura paterna ao lado.





— É um Poliwag, keikikāne. — Riu de lábios fechados. — As origens de seu nome dizem que significa “criança brilhante”.





keikikāne

Do havaiano: filho




Yuuta pôde comprovar que se sentiu mais aliviado e um tanto agraciado por, enfim, presenciar o desfecho das circunstâncias nada agradáveis a respeito do pobre Poliwag. Além do mais, se pegou num leviano sorriso bobo ao visualizar o pai de seu amigo que começou a, com alguns gestos brincalhões que inspiravam a destreza e o heroísmo, inspirar em lendas e mais lendas a respeito de coisas que nem estava prestando atenção, mas deu valor à atenção que fulminava pelo orgulho cravado no olhar instigante e admirado do pequeno Mansur ao seu lado.





— É. Isso valeu a pena. — Yuuta deixou escapar o provérbio, com sinceridade. — Mas eu ainda não sei o que exatamente vai— É interrompido, de maneira abrupta, quando uma forte ventania envolve todo o seu corpo.





Para o melhor de sua sanidade, sentiu um enjoo momentâneo ao perceber que havia sido radicalmente levado para outra região do mapa. Assim que se recompôs, pôde ver que seu companheiro de bordo estava ao seu lado. Diria que foi num passe de mágica, mas o solavanco físico que recebeu do início ao fim não foi lá tão agradável para assimilar algum truque especial. O preocupante, na verdade, foi quando suas pupilas foram rasgadas com o tempestuoso e sufocante calor de uma cabana em chamas logo à frente.





Além disso, pôde reconhecer também o homem que estava ao lado da versão infanto-juvenil de Kai, ao lado de uma mulher que, a todo custo, se depenava a fim de se soltar dos braços do companheiro e transgredir os limites de sua tolerância contra o fogo para adentrar à casa. Ao redor, uma considerável multidão, transtornada entre olhares desesperadores e inquietos, enquanto os solícitos e aptos a qualquer tipo de ajuda encaminhavam alguns Pokémon do tipo água até a extinta residência.





— O que aconteceu aqui, afinal?! — Yuuta bradou, incrédulo e com as mãos gesticuláveis a ponto de suprimir sua ansiedade. — Estava tudo bem há um minuto atrás e- o que vamos fazer?!





Gritos de pânico se instauraram, o que também chamou a atenção da dupla em questão, quando o teto da cabana desabou em fuligem — o que concedeu ainda um pouco mais de margem às labaredas que consumiram o restante de fibras e madeira sem qualquer hesitação.





Que Yuuta tinha ciência de que ninguém poderia vê-lo ou ouvi-lo, era incontestável. A esse ponto, desprovido de qualquer capacidade cognitiva que fizesse sentido, partiu em disparada ao local do incêndio. Mesmo que não pudesse estabelecer contato direto com alguém ou algo que estivesse preso naquele turbilhão de chamas, ainda restou um pingo de esperança de que poderia mover alguns pauzinhos do seu mundo para impedir com que a calamidade se alastrasse com mais força contra este mundo. Contar com a sua versão mais velha seria uma boa pedida, se ao menos não fosse matá-lo de infarto de uma vez, o que acarretaria a um spoiler tenebroso de sua própria vida.





Por sorte, notou que a população compartilhava do mesmo pensamento. De prontidão, avistou três Whiscash, um Gyarados e um Toxapex em total mobilização contra a barricada da entrada principal — ainda que o trabalho se tenha mostrado mais eficiente por conta da serpente aquática, especialmente por seu jato d’água visivelmente mais poderoso do que os demais, qualquer auxílio era bem-vindo.





Assim que adentrou à casa, julgou estar na sala de estar — agora, totalmente irreconhecível e entregue às pilhas de cinzas e labaredas — e, de longe, pôde escutar uma tosse aguda e rouca, mesmo que não pudesse apontar a direção com clareza. Como premeditado, ainda que imprudente, não sofria quaisquer danos perante o fogo ou incômodo diante da densa cortina de fumaça.





— Parece que o garoto está lá em cima. — Comentou o comissário de bordo, assim que suas primeiras palavras arrepiaram os cabelos no pescoço do menino.





— ... Quando foi que você chegou aqui?! — Questionou, ainda com o coração descompassado.





— Isso não importa. Olhe lá. — Apontou à frente.





Por mais que não tivesse observado nada de relevante à direção respectiva a não ser um monte de móveis se desabando em poeira, Yuuta comprovou o olhar mais uma vez. Misteriosamente, percebeu que haviam progredido ao segundo andar da moradia e que, ao fundo, quase isolado em um minúsculo compartimento onde o teto não havia desabado por completo, se encontrava o seu — ainda não definido nessa linha temporal — amigo.






https://www.youtube.com/watch?v=OzLhXesNkCI





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Por uma fração de tempo irrisória que compreendeu mais do que se imaginava, o jovem Kazami pôde compreender — mais do que isso, pôde sentir — o alarde aterrorizante que consumia o olhar medroso e o semblante traumatizado do pequenino garotinho moreno e coberto de arranhões e fuligem entregue ao canto do que, provavelmente, outrora foi o seu quarto. Com as bochechas trilhadas pelas lágrimas que evaporavam à medida que seus cílios sequer tinham forças para contracenarem com o calor desgraçado do ambiente, os lábios de Kai tremiam por total voluntariedade, ainda que seu pavor acometesse qualquer palavra que gostaria de dizer em prol de reverter a situação, se é que havia alguma maneira.





Pela primeira vez, durante um bom tempo que não se conservou ao direito de relembrar, o rapaz teve a empatia necessária pelo próximo.





A criatura que se aproximava de forma sorrateira e tirana, por outro lado, não ostentava de nenhum senso de bondade ou simpatia para compartilhar. Os bigodes eriçados e a pelugem do corpo alaranjado e negro em alerta eram sinais de que farejava o momento oportuno para liquidar com a situação, ainda mais com o terreno ao seu total favor. Um desviar de olhares em falso ou qualquer movimento, mínimo que fosse, e suas garras traiçoeiras estariam prontas para disferirem contra o seu alvo.





Acompanhado de Kai, em seus braços trêmulos — porém, mais firmes do que conseguia —, o pequeno Poliwag que havia resgatado em outra ocasião. Por mais que nutrisse do mesmo sentimento que o seu amigo, o instinto selvagem do Pokémon girino em afrontar o oponente, independente do seu tamanho ou o quão amedrontador fosse, gritava pelo anseio de, principalmente, proteger aquele que o amparou em um de seus momentos mais difíceis.





De forma involuntária, a criatura aquática se esgueirou do colo de seu parceiro e confrontou o Pokémon felino da maneira que achou melhor. De seu subdesenvolvido vórtice, disparou uma ínfima quantidade de bolhas que estouraram antes mesmo de atingirem o seu alvo pretendido.





Kai, em uma voz fraca e quase incompreensível, suplicou para que Poliwag retornasse ao ponto que ainda era considerado seguro, porém não foi obedecido. O desespero acometeu seus olhos arregalados quando ouviu um seco rangido logo acima de si. As poucas vigas em chamas restantes que sustentavam o telhado estavam prestes a desabar em sua cabeça.





Sem hesitar, o inimigo — reconhecido como Torracat pelos conhecimentos que Kai havia absorvido dos ensinamentos seu pai — ralhou um poderoso arranhão contra o corpo frágil de Poliwag. O golpe proporcionou um recuo intenso, o necessário para que o pequenino girino fosse arremessado próximo ao seu treinador. O problema, no entanto, era que o chão percorria alguns rastilhos de labaredas que, consequentemente, acabaram o ferindo mais do que o pressuposto.





A poucos centímetros de distância, Kai tentou alcançar a cauda de Poliwag, porém foi surpreendido pela aproximação súbita de Torracat. O ronronar perigoso e tão pouco amigável do felino fez com que o menino hesitasse as suas mãos por um curto intervalo de tempo. Os olhos amarelados e ariscos do Pokémon do tipo fogo contra o olhar suplicante e apavorado do menino, como se um entendesse o desejo do outro e quisesse o contrário daquilo que predeterminavam. Estavam face a face, por fim das contas.





Tão de repente, um arrombo percorreu os quatro cantos do que se restava naquele cômodo. Ao buraco outrora pertencente à porta, o mesmo Gyarados visto anteriormente, acompanhado de um Gigalith — que, ao contrário dos Pokémon do tipo água, conseguia abafar com consistência o fogo produzido por onde se debruçava —, além de um Politoed que, em seus braços, auxiliava pelo menos o suporte para quatro Pyukumuku. Logo atrás, sob uma leva de panos umedecidos entre o corpo e o rosto, o pai e a mãe do garotinho em prantos.





A intimidação cavernosa de Gyarados foi o suficiente para que Torracat se arrepiasse da cabeça às patas. Incapaz de prosseguir com tantos oponentes, o felino disparou com sagacidade após um salto pela janela estilhaçada. Enquanto isso, os outros Pokémon se encarregaram de preencher a área com toda a água que fosse necessária para saciar por completo a combustão causada. Assim que confirmado que o chão estava mais seguro do que anteriormente, os minúsculos Pyukumuku desceram no intuito de finalizar as quinas que ainda trilhavam um intenso caminho de labaredas. Politoed, por sua vez, se prontificou em resgatar a sua forma primordial e, claro, Kai.





Assim que resgatado, foi apenas nos braços da mãe e com o amparo do pai que, finalmente, o pequenino garoto se debulhou em lágrimas. Descarregou todo o medo que sentiu em tão pouco tempo sem cerimônias e, longe de se importar com a situação atual, ao menos estava certo de que, a partir daquele momento, estava seguro de novo.





— Fica calmo, meu filho. — Apaziguou o pai, com um sorriso sincero e acolhedor. — O mar está muito calmo. Tudo está calmo. Você vai ficar bem. — Sussurrou gradativamente, na esperança de que o tom suave de sua voz reanimasse o seu, embora não parecesse à primeira vista, bravo e destemido garoto.













— Caramba, essa foi por pouco. — Suspirou Yuuta, já ao lado de fora do que restou da cabana, um pouco mais despreocupado.





— Ainda bem que a comunidade daqui é bem unida. — Sorriu o comissário. — Pena que o garoto sofreu um bocado para isso, não?





— É. — Viajou tanto em seus pensamentos quanto em seu olhar. — Eu não imaginava que o Kai tinha passado por essa situação horrível.





Em um breve momento de calmaria, onde apenas o falatório distante da vizinhança era pouco distinguido, Yuuta ouviu o som da locomotiva aquecendo os seus pistões mais uma vez.





— Parece que é a nossa hora. — Inquiriu o senhor. — Vem. Não podemos nos atrasar!





— Mas- ah, ok. — Ainda abalado com o que presenciara, o menino desistiu de contestar ou pedir para ir embora de uma vez por todas.













— É, Croc. Se você estivesse lá, aposto que teria ajudado muito. — Yuuta riu de lábios fechados ao observá-lo inquieto perante o seu assento.





— Nawr? — O Pokémon lacoste inclinou a cabeça para o treinador.





— Não se preocupe com isso. — Avisou a versão sexagenária do rapaz. — Esse pestinha ainda irá te ajudar muito daí pra frente. — Comentou em um certo tom repreensivo, porém nostálgico.





— Bem, espero que sim. — Sorriu, até mesmo se esquecendo, por um instante, sobre qual peste estava se tratando. — Para onde estamos indo agora?





— Ah, eu — Antes de prosseguir, o comissário de bordo é interrompido quando a iminência de uma forte luz perturbou a sua visão. — Parece que já estamos chegando.





— Putz, já? — Impressionou-se com a curta viagem, ou intervalo de tempo, ou sabe-se lá o quê regia a equação do universo naquela locomotiva.













Desta vez, o ambiente não propagava perigo, muito menos indícios de algo calamitoso prestes a acontecer. O silêncio temperava o quarto, pouco humilde — diga-se de passagem. A claridade pouco invadia o recinto — devido às persianas quase fechadas — mas ainda resistia firme quando a ventania livre de exageros percorria pela janela e embalava uma decente quantidade de luz solar para reanimar alguns cantos levemente empoeirados. A sofisticação nos móveis não se fazia de rogada, tão pouco a decoração efetiva no acabamento das paredes e em uma sessão de papéis de parede em outras. O ilustrado e bem cuidado piano da Steinway & Sons, praticamente intocável a julgar pelas partituras devidamente organizadas e intactas sobre um porta-objetos, um grandioso e detalhado planetário instalado no teto, além de uma gama vasta de pôsteres de animações, ícones de quadrinhos e jogos eram alguns dos elementos que recheavam o quarto de vida.





Vida esta que parecia não ser correspondida com o marasmo carregado pela atmosfera monótona. Quase nada presente nas prateleiras customizadas, como miniaturas colecionáveis e alguns brinquedos, parecia ser, de fato, utilizável. Compuseram adornos de um ambiente destinado à gravação de algum documentário, a julgar que, no mínimo, uma criança deveria passar a maior parte do tempo ali e desfrutar da variedade de bugigangas dispostas ao seu entretenimento.





— Caramba! Não acredito! — Yuuta se aproximou de uma prateleira próxima de uma cômoda polida do puro carvalho. — Essa é uma edição de colecionador de uma réplica de 1/16 da Pelican Town!





— Parece que ele não mede esforços para colecionar qualquer coisa que esteja a sua disposição. — Observou o outro, tamborilando o indicador no ar próximo de outros objetos.





Obteve um resquício de simpatia, em um introvertido sorriso, ao destacar uma miniatura onde se destacavam uma garota escorada próxima de uma árvore e um garoto deitado num gramado. Se não lhe falhou a visão, os nomes de ambos eram, respectivamente, Faye e Colin.





— Tem muita coisa maneira por aqui! — Exclamou, nitidamente animado. — Não reclamaria nem um pouco se essa fosse minha nova vida! — Por fim, caçoou com uma boa risada.





Observaram mais um pouco. Nada de relevante, no fim das contas. A cama acolchoada, tão organizada quanto perfumada, o roupeiro quilométrico que sequer fizeram questão de abrir, por um princípio básico de privacidade e uma escrivaninha com algumas anotações e mais quinquilharias devidamente em seus lugares. Nenhuma anomalia ou coisa suspeita, até então.





— ... Ok. Talvez, a vida do camarada aqui parece ser bem chata, eu acho.





Antes dos palpites de Yuuta continuarem, são surpreendidos por um grito no andar inferior. O que foi dito, na verdade, não foi captado com clareza, porém aparentava carregar um traço de raiva e autoritarismo na voz.





Assim que abandonaram o quarto, se depararam em um corredor abarrotado de outras portas. Apesar de confuso, a escadaria para o primeiro andar não era tão distante quanto imaginavam. O carpete vinho e macio sobre os degraus amorteciam até mesmo os desenfreados passos de seus sapatos, além de que o corrimão circular, tão liso quanto resplandecente, suavizaram a descida com precisão.





— Quantas vezes eu tenho que te dizer que não tolero esse tipo de comportamento aqui dentro, Neil Green Campanella?!





Diante da enfurecida voz daquele senhor de cabelos escuros, curtos e muito bem penteados, seu aspecto enraivecido parecia não condizer com a gravidade do suposto feito pelo menino que, evidentemente, imobilizou-se de cabeça baixa e com o olhar acometido pela frustração perante a figura autoritária. O modo pelo qual se vestia entregou o fato de que não estava em um dia de folga ou realizaria alguma atividade de lazer. Um blazer cinzento, de certo de alguma grife famosa que ostentava um ícone dourado em sua borda, acompanhado de uma camisa social, branca muito bem abotoada e acompanhada de uma calça do mesmo conjunto, azul-marinho, impecável e em um tom forte, finalizada com sapatos marrom-escuros — muito bem ilustrados, quase se notava o próprio reflexo neles caso se esforçasse.





— Eu não gasto uma fortuna para que você receba uma educação de qualidade para que — Em mãos, aperta uma gerigonça que nem mesmo sabia apontar o que era. — Você fique criando essas- essas porcarias durante a aula!





Enquanto o pequeno garotinho de óculos recebia o sermão, eventualmente girava o olhar para a figura materna ao seu lado. Tão elegante, vaidosa e indiferente do que poderia imaginar, a mulher não fazia muito caso para a tremenda indignação de seu esposo. Na verdade, deveria estar pensando em algo infrutífero como a reunião para o chá da tarde com algumas conhecidas da nobre vizinhança. Sem ter o que cogitar, Neil apenas retornou à atenção — não que merecesse — ao pai.





— O que é isso, afinal?! — Sacudiu o objeto, agora todo desfigurado, em sua mão. — Por acaso, você estava recolhendo lixo para fazer essa tranqueira?





— Não, pai. — Respondeu, em tom baixinho e, ao mesmo tempo, intrigado com a situação. — Era um trabalho de—





— As suas desculpas não me convém, Neil. — Suspirou, assim que largou o invalidado trabalho escolar do menino ao chão. — Não! Nem ouse colocar as mãos nessa sucata de novo!





— M- Mas, eu preciso fazer algo para a aula de— É interrompido. Seu rosto ricocheteou ao lado direito com a força do tapa que recebera.





— Eu crio você para que seja o meu sucessor direto na Trive Corporation. — Frisou, com o olhar sério e penetrante. — Não para perder tempo com essas atividades vagabundas. Aliás, é muito bom- é muito bom saber que é assim que aquele colégio visa a educação do meu filho! — Exasperou, com as mãos gesticuladas ao alto.





Pela terceira vez, Neil tentou argumentar, porém, apenas recebeu um gesto de silêncio por parte do pai. Por mais que soubesse que uma das primeiras coisas que ele detestava era justamente ser interrompido, tamanha foi a injustiça por descontar a raiva em um trabalho de artes que, de certa forma, era uma das suas matérias favoritas, acompanhada de ciências naturais e matemática. Encarou o seu protótipo esfarelado e entregue à manutenção total ao piso da sala, seria o que intitulou como uma máquina dos sonhos — o nome poderia melhorar, mais tarde —, onde, no futuro, conseguiria ajudar pelo menos uma pessoa a guiá-la pelas memórias que gostaria de ter vivenciado em troca daquelas que nunca desejou ter visto. Se desse certo — e faria com que tudo corresse bem — criaria uma empresa com esse propósito simples, porém arquitetado de uma forma ambiciosa, guiar as pessoas para o melhor.





— Amanhã mesmo, sua mãe irá cancelar a sua matrícula. Lugarzinho medíocre, esse. — Zombou com uma baforada esnobe. — Já é o terceiro colégio em menos de dois meses, Neil. Tem ideia de quanto tempo de trabalho estou perdendo por causa de suas besteiras?!





Não muito longe dali, a dupla de observadores pontuava a repreensão exagerada por trás de uma das pilastras do sobrado.





— O coroa dele é casca-grossa mesmo, hein? — Sussurrou Yuuta.





— Por que você tá cochichando? Eu já disse que eles não vão te ver nem te escutar.





— ... Força do hábito. Espera aí! Esse também deveria ser um mau hábito seu.





— Eu aprendi a lidar com isso depois de 30 anos. — Sorriu, convicto.





— Chega! Chega de suas desculpas e deste comportamento inapropriado! — Bradou o senhor Campanella. — Já pro seu quarto!





A ordem não foi contestada. Sem a chance de recolher o início de seu sonho, agora destruído como o seu semblante, Neil seguiu, esmorecido, até o lance de escadas. Se esforçou ao máximo para neutralizar sua feição enquanto progredia os passos arrastados — a este ponto, invejava a discrepante capacidade de insensibilidade de sua mãe que poderia ter remediado a situação — mesmo que custasse a vontade de esbravejar perante à sua amarga tristeza de confessar o que nutria há tanto tempo.





Tão distraído e abafado com seus pensamentos relutantes que tropeçou no quarto degrau da escadaria. Por pouco, não arrebentou o nariz contra a quina dos próximos degraus.





— Se andasse de cabeça erguida como eu lhe ensinei, isso não aconteceria! — Exclamou o homem, com o olhar cravado em seus movimentos. O tom de voz não soube certificar se era por zelo ou desdém às atitudes do filho.






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Apressou os últimos metros até o corredor com direção ao seu quarto. Correu e bateu a porta com o máximo de força que descarregava por seus fracassos tão enaltecidos — que às vezes pegava se questionando se realmente era essa negação toda que mencionavam com tanta certeza. No seu quarto, ao menos, sentia um resquício de paz. A poeira dos livros, o cheiro esquecido do piano e o carinho que depositava em seus artigos de coleção. O refúgio que, da mesma forma que odiava em tempos claros, amava em momentos obscuros. Se pudesse, de alguma forma, saber que estava compartilhando o recinto com o seu futuro amigo e a versão envelhecida dele talvez se sentiria um pouco melhor.





Tímido e com as lentes neblinosas por conta de poucas lágrimas que custou a remoê-las, o garotinho de apenas dez anos se aproximou da janela e abriu as persianas. Mesmo que a radiação matinal o incomodasse um bocado, não foi desconfortável apreciá-la naquela manhã.





Ao longe, não era difícil visualizar a Torre Prisma. Tão distante e, para Neil, tão perto que, de lá, poderia seguir qualquer direção em busca de aprimorar seus sonhos em uma nova vida. Apenas ele. Sem regras. Sem cobranças. Apenas a sua consciência regrando o que deveria fazer em prol de compartilhar o seu conhecimento para o benefício alheio.





Todavia, era uma criança, apenas. E tinha total ciência disso. Sequer poderia atravessar os portões de sua casa sem ser visto, quem dirá fugir para outro lugar. Supondo que conseguisse, sabia também que não ia conseguir viver por muito tempo. Por mais que doesse chamar aquela casa de lar, teve que compactuar com a irreversível verdade.





— Aposto que você não me pega!





Ah, é? Você vai ver!





Os olhos azuis e curiosos logo flagraram um motim em forma de gostosas risadas ao lado de fora. Em sua rua, tão tranquila quanto agradável, um grupo de crianças — deviam ter aproximadamente a sua idade — corria para lá e para cá, sem quaisquer pretensões. O pequenino Campanella se interessou, através de seu mínimo sorriso reconfortado com a cena, na brincadeira daquelas desconhecidas que aparentavam ser tão amigáveis.





Nunca havia falado com elas, claro. Mas ainda reconhecia alguns rostos. Duas delas eram suas vizinhas, enquanto as demais deviam ser colegas de classe ou visitantes de outra família. Como o bairro era residencial, as chances de alguma nova face aparecer da noite para o dia eram bem grandes e, de certa forma, Neil gostava de observar estes pequenos detalhes, por mais irrelevantes que fossem para o seu futuro premeditado pelos seus pais.





Nunca poderia sonhar em ir lá para brincar com elas, no entanto, se sentia um pouco próximo de cada uma mesmo que só as ouvisse de longe e, independente do horário, suas presenças sempre foram mais do que bem-vindas.





Por outro lado, Yuuta pôde compreender a razão tão específica do desejo de fuga de seu companheiro e, para ser sincero, conseguia apoiá-lo sem quaisquer dificuldades depois desse desembaraço nada amistoso. A julgar pelo passar dos anos, não consideraria a melhora do relacionamento familiar — uma vez que a vontade de deixar o próprio lar só se intensificou com o tempo.





— Tempos difíceis, não? — Comentou o velhote.





— Que barra, hein? — Se deu por vencido, tamanha a indignação pelo teatro gratuito anterior. — Qual é? Como pode existir um pai tão chato assim?





— Se eu pudesse te dizer, acho que embarcaríamos em outro trem. — Riu de leve. — Mas não é só isso. Veja.





Em um loop quase que instantâneo, Yuuta percebeu a passagem de dias e dias numa rotina que pôde compreender a mesma durante todo o percurso. Até que estacionaram em um amanhecer específico.





— Ok. A gente vai ver ele dormindo até ele se esborrachar no chão depois que tropeçar no cobertor? — Aproveitou a oportunidade para um pingo de malícia.





— Não exatamente. Mas se for o caso, por que não? — Sorriu de volta.





— Até que você não é tão- quer dizer, até que eu não perdi totalmente o senso de humor no futuro.





Antes de mais algum comentário abastado de gracinhas, ambos foram interrompidos por um contínuo e desregrado toque contra a janela. Algo semelhante, na verdade, idêntico a uma bicada. Depois, três. Seguidas de mais cinco. O suficiente para que os olhinhos, desfocados e mixurucas, desprovidos de lentes do pequeno Campanella despertassem a contragosto.





— Hm- o que- o que foi? — Murmurou, ainda procurando a razão do incômodo. Ainda que seus óculos estivessem sobre o criado-mudo, conseguiu enxergar as horas sem muitos problemas. Não eram sequer oito da manhã de um sábado.





Derrotado por uma sequência atormentadora de bicadas em sua janela, o menininho desistiu de dormir. Coçou bastante os olhos após se espreguiçar, se levantou com preguiça e ajeitou seus óculos a fim de localizar a praga que o privou dos bons sonhos. O resultado o deixou um tanto chocado, na realidade. Um pequeno pássaro, do estilo tordo-americano, com o bico inquieto e, ao se aproximar do parapeito, pôde reparar que uma de suas asas estava severamente machucada — um hematoma bem roxo acompanhado de um modesto sangramento em meio à penugem alaranjada.





Nunca havia visto algo tão violento e nem passou por sua cabeça sobre quem poderia ter feito algo de tamanha gravidade. De imediato, destrancou a janela a fim de auxiliar o Pokémon. Suas mãos pequenas e desajeitas frearam quando se conscientizou de que maneira poderia ajudá-lo sem piorar a situação. Não entendia absolutamente nada de cuidados médicos com as criaturinhas mágicas — pudera, seus pais evitavam ao máximo que obtivesse contato com elas — e, no pior dos casos, podia se tratar de alguma hemorragia — visto que essa era a única coisa relacionada a sangue que o jovem Campanella reconhecia.





O piado exausto do passarinho levou à preocupação do garoto às alturas. Ainda que sem jeito, tentou, da maneira mais zelosa possível, agarrá-lo sem o pressionar demais. Mesmo que trêmulas, suas mãos conseguiram o conduzir até a sua cama. De acordo com o seu senso comum, um local confortável seria o princípio para iniciar o tratamento, fator que ainda não tinha mentalizado com muitos detalhes.





— Ahn, eu— Tornou o olhar pelo quarto, à procura de algo útil que estancasse o sangramento do indefeso Pokémon, em seguida retornou ao próprio. — Eu vou te ajudar, tá bom? Só tenho que- achar alguma coisa que faça isso!





Vasculhou algumas gavetas da cômoda, na expectativa de encontrar algum curativo ou esparadrapo. Nada. Encontrou tanto lixo que até mesmo a sua concepção definiu que teria que dar fim em algumas coisas mais tarde. Em seguida, revirou os compartimentos de seu criado-mudo e escrivaninha. Voltou à estaca zero mais uma vez. A aflição começou a palpitar em seu sangue à medida que os piados do Pokémon se concentravam em maior agonia.





Foi nos quarenta e cinco minutos do segundo tempo que se recordou de uma caixa de primeiros socorros que a sua mãe deixou guardada em seu roupeiro, ao fundo de seus sapatos. A encontrou com eficácia e sorriu tão aliviado quanto um neurocirurgião após um procedimento sucedido. Havia algumas instruções básicas em um pequeno manual feito pela própria mãe, o qual Neil nunca pensou que viria a ser útil em algum dia.






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— Aqui. Eu vou cuidar de você, tá bom? — Se aproximou do passarinho com cautela. O Pokémon, por sua vez, mesmo que ligeiramente arisco à súbita aproximação do menino, se deixou levar pelo cansaço extremo até a falta de vigor. — Hm, bem, vamos ver.





Um pouco destrambelhado e enrolado, mas conseguiu. Um pouco de clorexidina, algo que custou a entender como funcionava mas que era o recomendado, uma gaze forrada com uma pequena fita de algodão e alguns curativos que foram necessários nas coxas enfraquecidas e arranhadas do tordo-americano. Estava tudo nos conformes, acreditou em seu diagnóstico após se deparar com os resultados.





Claro que ele não acordaria de imediato ou sequer demonstraria agradecimento pelos cuidados, estava tão fraco que Neil tratou de desistir de um trabalho oculto de ciências que consistia em coletar diferentes sementes que encontrava nos jardins de sua casa para futuras pesquisas. As juntou em um pequeno recipiente e, em outro, depositou um pouco de água fresca de sua garrafinha.





— Aqui. — Colocou, com cuidado, os potinhos sobre a cama, ao lado do Pokémon voador. — Não é muito, mas eu posso arrumar mais pra você depois. Tem muita semente que cai das árvores no quintal aqui de casa.





Aos poucos, o olfato apurado do pássaro captou a essência das diversas sementes dispostas para si. Assim que se despertou, pôde perceber que não sentia tanta dificuldade para se locomover — ainda que doesse um tanto, era suportável. Em movimentos rápidos com a cabeça, encarou o garotinho sorridente e atencioso e, em seguida, a comida e a água que tanto necessitava. Bicou ambos os recipientes como se fosse um vasto banquete de boas-vindas.





Neil sentiu uma pontada de agradecimento por ter feito algo benéfico por alguém, ainda mais um Pokémon. O fato, também, estava explícito em seu semblante contagioso de felicidade. Aproveitou o ensejo e retirou um pequeno livro de capa dura de baixo da cama. Ali, deviam estar catalogadas pelo menos oitocentas espécies de Pokémon — não era a versão atualizada, mas seus pais jamais poderiam desconfiar que estava “perdendo tempo com coisas fúteis”.





— Hm. Vamos ver quem é você. — Comentou consigo mesmo enquanto folheava as páginas. — Aqui! — Exibiu o livro aberto ao lado do modelo ao vivo e a cores. — Fletchinder. O Pokémon brasa. Hm. Uhum.





— ‘tchin? Fletchin? — O piado agudo do Pokémon, agora muito mais consistente e vívido do que antes, encontrou o olhar curioso do menino à frente.





— Eu me chamo Neil. — Sorriu. Fazia tanto tempo que não sorria tantas vezes que sua arcada dentária estava até incomodada com a gesticulação tão prazerosa para o seu bem-estar.





Apesar dos reclames por uma manhã gloriosa de sono interrompida, Neil se sentiu profundamente grato por tê-la substituído por um bem maior. Não se tratou apenas de um ato de primeiro socorros ao próximo e sim ao início de uma nova, mesmo que secreta, amizade.





— Ah, eles são inseparáveis mesmo. — Comentou Yuuta, um resquício emocionado. — Acho que ele já nos contou essa história umas duzentas vezes.





— Essa e a do jaleco. Como esquecer, não? — O velhote arqueou uma das sobrancelhas. — Vocês ainda vão se ver muito, se me permite dizer. E como sei.





— Sério? — Inquiriu uma face ligeiramente animada.





— Até o último dia de sua vida, eu diria. Mas pode ser um exagero.





— Tá bom. — Riu de leve. — Mas, dessa perspectiva, as coisas são bem diferentes. — Tornou a encarar o menininho ao lado do Pokémon. — Quer dizer, por mais preso que ele estivesse, ainda fez um bom amigo e tem pais que o bancariam pela vida toda.





— Então, você quer dizer que a liberdade tem um preço a se pagar?





— Bem, não. Talvez sim. — Coçou a nuca, confuso. — Não é que eu ache que ele devesse permanecer de cabeça baixa pros pais até o fim de sua vida, mas- de uma forma ou de outra, o pai dele ainda queria o melhor para ele. Mesmo sendo aquele, argh, prefiro não comentar.





— Não está errado, de certa maneira. — Concluiu, simpático. — Ainda que cada um deve seguir os seus próprios caminhos, é importante dar as mãos para o pai e para a mãe, certo?





— Claro. Eu mesmo, digo, você também- não quero me ver progredindo na vida sem o carinho da minha mãe. — Comentou com sinceridade. — Apesar das coisas estarem meio difíceis ultimamente, eu quero que ela esteja ao meu lado. Ainda mais depois do que vi aqui.





— Bem, não seja por isso — Sorriu o senhor. — Não se esqueça de que nossa carona está chegando!













Assim que adentraram ao ambiente — um enorme salão cerimonial —, ambos foram recebidos, ainda que não dedicados inteiramente aos próprios, por uma enxovalhada maestral de uma dezena de lança-confetes. Uma penca de criados(as) estava presente e devidamente enfileirada do começo ao fim do luxuoso recinto. A decoração não podia ficar para trás, uma vez que a ocasião exigia algo, no mínimo, marcante para toda a vida.





— Parece que viemos pro lugar errado. — Inquiriu Yuuta, confuso com o aspecto tão positivo e vibrante do local, diferente de tudo que estava acostumado a ver até então. — Aliás, que lugar é esse?





— Me admira não saber. Você já esteve aqui e não faz muito tempo, inclusive. — Deu de ombros.





Tão perdido nos detalhes decorativos que nutriam de tanto artesanato quanto dedicação, só pôde constatar que era algum tipo de aniversário para alguma criancinha de, no máximo, cinco anos. As tiras enfeitadas com purpurina e uma leva de tecidos intercalados entre o rosa-bebê, lilás e azul-claro, harmonizados também nas cortinas ao fundo do salão, onde um majestoso vitral não deixou de exibir a sua magnificência perante tantas obstruções coloridas. Mais à frente, não menos importante, uma enorme mesa forrada com uma toalha customizada com alguns Pokémon que não reconhecia ao certo, mas remetiam certa semelhança a um Ponyta — apesar das cores serem as mesmas que enxergava no turbilhão de bexigas, nas centenas de fitas e na decoração em geral.





Não estavam ali por causa do banquete farto e do bolo de camadas tão cremoso quanto apetitoso, visualmente falando. Yuuta quase indagou mais uma vez, até que o senhor ao seu lado gesticulou a sua cabeça um pouco mais acima da direção costumeira. O que finalmente iluminou as suas dúvidas estava pregado de uma parede à outra, em altas e claras letras — Feliz aniversário, Anne G. Shabboneau.






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— Espera, espera, espera. — O jovem Kazami sacudiu a cabeça algumas vezes, incrédulo. — Anne? Aquela garotinha é a Anne?





— A própria. Em seu aniversário de quatro anos. — Disse em meio a um suspiro.





Assim que se aproximaram, além de observarem a criadagem sorridente e animada ao resplendor da aniversariante que, não deixada para trás nesse quesito, urrava e batia palmas intensamente ao colo de uma senhora. Não era a senhora Margareth, o menino bem que pôde salientar. Acima de tudo, desconsiderando a aparência, a simplicidade de fato não fazia parte daquela mulher. Os colares de pérolas, os anéis reluzentes — devia ter, no mínimo, dezoito quilates em algum deles — e os cabelos castanhos impecáveis presos a um coque elegante trouxeram argumentos contundentes para o semblante observador de Yuuta. Foi na semelhança das expressões com as sobrancelhas, os olhos acinzentados e na arcada sorridente que constatou que aquela jovem senhora, na verdade, era a mãe de Anne.





— Eu pensei que ela— É interrompido.





— Shiu. — Indicou com o dedo, sem deixar de acompanhar a cena. — Apenas observe.





— Aqui está — Tão logo, a reconhecível senhora Margareth, sem algumas linhas de expressão e com o mesmo aspecto magnânimo de sempre, surgiu carregando uma vela de aniversário. — Para a nossa querida aniversariante!





Tão icônica quanto a vela customizada de cerâmica com uma pequenina Jirachi sorridente em sua base, foi o enorme e boquiaberto semblante carregado de animação pela parte da garotinha que, justo da parte de Yuuta em quase desassimilá-la à adolescente que conhecia, não havia conhecido a tinta de cabelo — e demoraria um pouco para ter essa liberdade — e demandava apenas do castanho, um pouco mais claro do que os fios de sua mãe. Claro que faria jus ao seu título, riu em pensamentos, com uma coroa de prata que vira e mexe se desajeitava de sua cabeça — e cabia à mãe a organizar cuidadosa e incansavelmente, quantas vezes fosse necessário. O vestido bufado e com uma saia-dupla rodada, ambos em tonalidade amarela, quase a transformavam em uma rechonchuda, diante de tanto tecido para um corpinho tão mirrado.





— Mamã! Mamã! — Apontando de maneira eufórica, também cutucava e repuxava a roupa da mãe. — Que “Pochemõ” é aquele?





— É uma Jirachi, meu bem. E “Pokémon”, você quis dizer, certo? — Sorriu de volta, com um ar divertido na voz.





— Oh, minha querida Anne. — Interveio a senhora Margareth, com uma feição mágica e determinada a lhe trazer um novo conto fabuloso, como de costume. — Dizem que, se você fizer um desejo com muito amor e determinação no dia de seu aniversário, a Jirachi, conhecida como a Estrela das Sete Noites, irá conceder o seu pedido!





— E não é só isso — Interveio, do outro lado, um mordomo. Calvo, tão alto quanto o que Anne conseguia alavancar a sua cabeça para admirá-lo e tão gentil quanto era acostumada. — Além de realizar o seu desejo, ela aparecerá para você quando o Cometa Millenium, uma antiga e lendária estrela cadente que vaga pelo espaço, brilhar no céu.





— Qualquer coisa? Ela aparece pra mim? — Encarou a criada com os olhos brilhando. Em seguida, devolveu o mesmo olhar para a figura materna. — É verdade, mamã?





— Dizem também que a mágica só acontecerá se você não revelar o seu desejo para ninguém. — A acariciou de leve em seus cabelos. A pausa também foi conveniente para tossir duas ou três vezes. — Caham, bem, só há uma maneira de descobrir, não é mesmo? — Apontou, com a cabeça, em direção ao bolo com a vela pronta a ser acesa.





A pequena princesa encarou a feição tão deslumbrante e animada do Pokémon estrela-cadente. Depois de saber um pouco mais a respeito daquela criaturinha tão meiga, os sabores que tanto insistiu para que não esquecessem na composição daquele enorme bolo redondo não era tão primordial quanto pensar em um desejo. Algo que fosse único e que, como a senhora Margareth mencionou, depositasse toda a sua ternura para que fosse realizado.





O semblante pensativo e animado durou alguns segundos, o que foi compreensível para os presentes que aguardavam por seu posicionamento — acima de tudo, a criada mais querida de Anne que esperava pacientemente para, então, acender a velinha.





— Já sei! Já sei! — Deu alguns pulinhos no colo da mãe, o sinal que a dona Margareth precisava.





O estalido das faíscas preencheu as pupilas saltitantes da pequenina Shabboneau. Murmurou algumas palavras, ou melhor, apenas gesticulou a boca em silêncio e fechou os olhos com delicadeza e com um sorriso tímido no rosto. Tão logo, soprou a vela com uma boa dosagem de seu fôlego.





Bonne anniversaire, Anne Gauthier Shabboneau! — O coro de vozes dos demais criados soou em uníssono e claro som.





Bonne anniversaire

Do francês: Feliz aniversário




— Feliz aniversário, carinho. — Logo, a senhora Shabboneau a abraçou por um longo intervalo de tempo, onde manteve as mãos firmes e acolhedoras nas pequenas costas da menina. — Espero que a Estrela das Sete Noites saiba que o meu maior desejo é sempre estar ao seu lado.





— Eu sempre vou estar com você, mamã. — Desvencilhou-se do gesto, com um sorriso infantil. — Com a senhora Margareth e com o seu Archibald, também!





— Ah, minha doce Anne — Murmurou a criada. — Eu te conheci desde quando era deste tamanhinho e olha só para você hoje — Deixou uma ou duas lágrimas escorrerem sem censura. — Uma menininha cheia de graça e vida.





— Não se esqueça de mencionar a personalidade elétrica. — Riu o outro criado.





— Ah, é! O que vocês acham que eu pedi, hein? Hein?





— Anne — Repreendeu a mãe, em tom carinhoso. — Lembre-se, o pedido não surtirá efeito caso conte a alguém, certo?





— Eu não vou contar, mamã. Só quero saber o que acham que eu pedi. — Sorriu, serelepe.





— Hm, que tal- já sei! — Arriscou Archibald. — Felicidade para sempre?





— Parece até que você não conhece a Anne, Archibald. — Contestou Margareth. — Olhe para essa carinha, há felicidade que pode durar mais do que uma eternidade do que essa?





— Pediu que suas bonecas ganhassem vida? — Brincou a mãe.





— Não e não! — Inquiriu Anne. — Sua vez, senhora Margareth!






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— Ah, eu não sou muito boa com essas coisas, minha querida. — Riu, envergonhada. — A paz mundial, talvez?





— Hm, também não — Respondeu, reflexiva. — Acho que isso seria bom, né? O mundo todo sendo amigo de cada um. Poxa, mamã. Eu não tinha pensado nisso. — Esmoreceu o semblante um bocado.





— Ei. Ei. — A figura materna, percebendo a reação da menininha, tratou de balançar um pouco as pernas a fim de animá-la. — Não é hora para carinha triste, Anne. Independente do que você pediu, tenho certeza de que foi graças à bondade de seu coração.





— Sim, mas — Mordeu os lábios. — A senhora Margareth é inteligente. Não seria legal pedir a paz mundial?





— Ah, meu bem — Reuniu as pequeninas mãos da filha com as suas. — Guarde o que eu vou dizer para a sua vida. Quando crescer e se tornar uma mocinha, você terá a chance de mudar o mundo ao seu redor.





— Vou? — Alavancou um pequeno e esperançoso sorriso em sua feição.





— Claro que vai. — A beijou em sua testa. — Lembre-se disso para sempre, carinho. Nunca aceite o mundo como ele parece ser. Ouse vê-lo como poderia ser.





Um pouco depois, um dos dois convidados penetras e imperceptíveis rondava a mesa no intuito de que atravessasse o plano espectral a fim de afanar alguns docinhos que sequer deram a devida atenção durante a comemoração.





— É uma pena que não podemos comer nada. — Disse o comissário de bordo, rendido por um suspiro.





— Ah, a Anne teve uma vida de princesa em todos os sentidos. — Yuuta sorriu com precisão. — Nós conversamos pouco sobre isso, mas ela é bem fechada quando o assunto é família.





— E com razão, não?





— Parece que ela era muito amada por aqui. — Alargou os braços à imensidão do recinto. — Bem diferente dos pais do Neil que se importariam mais com uma pedra do que com ele.





— Talvez ela tenha uma boa razão para isso, não concorda?





— O que poderia ser tão desastroso a ponto dela se trancar para o mundo?





Quase ao mesmo instante que questionou, de forma abrupta e tenebrosa, um relâmpago refletiu a estrutura de uma enorme janela em sua posição, seguido de um escandaloso trovão. As gotas da chuva incessante pareciam ostentar do profundo desejo de vandalizar o vidro, de tamanho o impacto acrescentado à forte ventania do exterior noturno.





Ao que retornou, se deparou com a mesma senhora que viu anteriormente, tão animada e cheia de charme ao lado de sua filha, entregue à sua cama, com um aspecto terrível e pálido. Acompanhada de Margareth e Archibald, vez ou outra sentia um forte incômodo no peito que a fazia contorcer e expressar uma feição desgostosa com a dor.





— S- Senhora — O tom de voz da dona Margareth não podia ser outro a não ser de frustração, além disso, foi a única coisa que conseguiu pronunciar.





Antes mesmo de responder, uma crise intensa de tosse atacou a convalescida mulher. Com auxílio de ambos, se sentou um pouco para recompor o fôlego quase inexistente nos pulmões que, há um tempinho, bem tinha ciência de seus estados.





— Eu estou bem. Eu estou bem. — Na verdade, detestava admitir qualquer fraqueza, mesmo que seus dois funcionários mais íntimos a conhecessem tão bem a ponto de saber que sua mentira era mais do que descarada. — Um pouco de água, apenas.





Archibald tratou de servi-la no mesmo instante. Enquanto bebia, era encarada pelo semblante sôfrego da senhora Margareth.





— Eu admiro muito a lealdade de vocês. — Comentou, distante e agradecida. — Espero que cuidem da Anne assim como estão cuidando de mim.





— Não diga uma tolice dessas, senhora. — Enfatizou a criada, com um sorriso triste. — Você e nós sempre cuidaremos dela com muita vocação e carinho. O lema da família Shabboneau, não é mesmo?





— Ah, sim. — Quase sem forças para o diálogo, seu sussurro soou exausto. Gradativamente, se reconfortou na cama. — Eu só preciso de um bom descanso. Vocês vão cuidar muito bem dela. Eu sei.





O mordomo estendeu a mão e a posicionou sobre a testa da mulher, a qual aparentava já ter desmaiado em um sono profundo.





— Está um pouco menos quente do que antes. Os remédios devem estar surtindo efeito. — Sussurrou à companheira de trabalho.





Adaptado ao clima tempestuoso e amargurado, Yuuta foi surpreendido mais uma vez com uma reviravolta a ponto de engajar o seu estômago a um mal-estar. De repente, se encontrava em um jardim muito bem arborizado e florido. O reconhecia em partes, visto que estava no exterior do Castelo Shabboneau e muitas coisas lhe assemelhavam às memórias recentes de sua última visita. O tempo estava radiante e pôde se sentir reconfortado ao distante canto de alguns Pokémon voadores, bem como o verde estridente das cerca-vivas e arbustos que observava pelo caminho.





— Hm — Coçou o queixo. — O jardim. Pelo que me lembro, a Anne me contou que foi sequestrada num almoço aberto ao público.





— Não acho que isso tenha algo relacionado ao sequestro. Ali. — Apontou com o indicador.






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A tonalidade da pele de Yuuta se esvaiu ao ponto de se tornar uma folha de papel ao que presenciou uma dezena dos funcionários, acompanhados — obviamente — de Margareth, Archibald e, ao meio, Anne. Não era preciso nenhuma palavra para entender o significado de tantas roupas pretas e, em especial, quatro dos criados carregavam consigo um caixão de madeira de cerejeira com suportes adornados em ouro.





Assim que chegaram à exata localização, os demais funcionários se posicionaram em linhas e se curvaram diante dos outros que ainda tinham outro trabalho a cumprir. Enquanto isso, Archibald não satisfez uma palavra durante todo o percurso e evitou olhares com quaisquer um próximos de si. Os lenços não se faziam eficientes com a dona Margareth que, a todo custo, tentava transmitir a melhor imagem ao lado da pequena Anne que carregava um tremendo semblante de descontento e, acima de tudo, confusão.





Assim que os quatro homens depositaram o caixão, com extremo cuidado, no buraco projetado para a sua entrada, dois deles trataram de escavar o montante de terra de volta ao seu devido lugar. O estopim para que Anne se soltasse da mão suada e trêmula da senhora Margareth.





— Não! Por que estão enterrando a mamãe?! — Bradou, desesperada. — Senhora Margareth, eles não podem enterrar a mamãe!





— Anne, minha queri— É interrompida.





— Se eles enterrarem, como- como a Jirachi vai realizar o meu desejo que é estar sempre com a mamãe?! — A pergunta proveio do encharcar de seus olhos de lágrimas.





A humilde senhora não se limitou às palavras tão dolorosas para ela — imaginou o desastre que seria pronunciá-las para uma indefesa e desnorteada garotinha —, então, a convidou a um forte abraço. Não era a sua filha, mas tamanha era a consideração que nutria pela pequena Shabboneau — tanto como foi com a sua figura materna.





— N- Não! A Jirachi vai trazer a mamãe de volta! — Sacudiu na esperança de se desvencilhar do gesto da criada, ainda que a própria a tenha segurado com mais força do que gostaria. — Ma- Mamãe! Mamãe!





O silêncio geral, tanto pelo respeito quanto pelo luto, não impediu que Anne se manifestasse da maneira que bem entendesse a respeito de algo que nem mesmo ela absorveu ao certo como e porque aconteceu.













Depois de algumas horas, ao cair sereno da tarde, restaram apenas a lealdade e a saudade de Archibald e Margareth perante a lápide. O epitáfio denotava a eternização de Amélie Gauthier Shabboneau. Uma pequena flor, copo-de-leite, estava repousada ao mármore.





— E pensar que aquela garotinha vai crescer sem o amor da mãe. — Suspirou a mulher, com o rosto inchado de tanto lacrimejar.





— Ela foi como uma mãe para todos nós. — O que surpreendeu Margareth foi que, na verdade, foram as primeiras palavras que Archibald disse desde o início daquele fatídico dia. Em suas mãos, um pequeno chapéu de motorista. — Ah, droga. Parece que começou a chover.





— Como assim “chover”? — O estranhou, em seguida, observou o céu. — Não caiu nenhuma gota.





— Não. — Assim que recolocou o chapéu, fechou os olhos e admirou a brisa superior. Tão logo, uma lágrima escorreu por sua bochecha esquerda. — É chuva, sim.





Sem mais, ambos se retiraram. O convite ao túmulo ficou por conta de Yuuta e seu companheiro de viagem. O garoto engoliu em seco assim que se aproximou da lápide da mulher que, há menos de cinco minutos, estava tão viva diante de seus olhos.





— Entendeu, agora? — Introduziu o comissário.





— Não- não sei nem o que dizer. — Suspirou e exasperou as mãos lentamente pelo rosto. — Ér, ao menos, eu- eu fico feliz que ela tenha conhecido a sua inseparável Misdreavus. E que o Archibald e a Margareth a cuidaram e amaram no lugar da mãe.





— Viu só? Esse é o real significado de empatia. — Sorriu. — Você está compreendendo o que é viver e, às vezes, abrir mão de seus problemas para agradar um amigo.





— Eu entendi a lição. — Suspirou, arrependido. — Por mais doloroso que foi acompanhar tudo isso, ainda tiveram alguns ótimos momentos.





— Acredito que nenhuma vida seria interessante sem altos e baixos, não é mesmo? Inclusive a sua, ou melhor dizendo, a nossa.





— Você tem razão. Ou devo dizer que eu tenho razão? — Ambos foram convidados a uma breve gargalhada.





— Nesse caso, eu me lembro de um rapazinho enfurecido que disse que, se fosse pra ser assim, era melhor que nem tivesse nascido ou recobrado as memórias. Ainda pensa assim?





— De forma alguma. — Protestou, enfatizando a gesticulação negativa com as mãos. — Eu fui um idiota em pensar dessa maneira. Não posso descontar os meus problemas e minhas frustrações nos outros. Especialmente nos meus amigos que, com certeza, estariam me apoiando mesmo com tudo o que passaram.





— Sendo assim, acho que nos resta apenas uma última viagem. — Observou o relógio de bolso. Pontual e objetivo, checou, ao longe, se já estavam prestes a embarcar.





— Mais uma? — Questionou, um tanto surpreso.





— Sim. Ainda falta uma peça a se encaixar, não acha?













ATO 4: (D)ESDE QUE SE FOI





Assim que abriu os olhos, de forma lenta e pesarosa, Yuuta percebeu que estava no conforto e maciez de sua cama. Tardou pouco para constatar alguns detalhes que preenchiam o seu quarto — ainda que estivesse um tanto diferente do que poderia recordar. Havia tempo que, por exemplo, não via o seu aparelho de MP3 que seria considerado uma velharia nos tempos atuais. Nem lembrava que tinha o guardado e, muito menos, como tinha chegado em seu lar.





— Yuuta! Yuuta!





Uma voz familiar ecoou através da porta entreaberta do ambiente. Feminina, um tanto ardida e carregada de afobação. Entretanto, mais jovial do que estava acostumado. Sem pestanejar, se levantou e direcionou-se ao corredor. Foi neste cômodo que trombou, metaforicamente falando, com um intenso choque de realidade. Não estava de volta à sua linha temporal. Quando se deu por conta, observou a si mesmo, tão pequenino, magricelo e peralta, correndo para a direção da porta.





— Mas- o que? — Franziu o semblante, totalmente confuso.





Desgovernado, seguiu a sua versão infantil tão serelepe pelos cantos da casa, até chegar ao destino. Assim que abriu a porta, arregalou os olhos em uma escala que sequer poderia contornar para disfarçar o seu impacto.





— Por que demorou tanto, bobão? — A menininha adentrou ao recinto, com um olhar repreensivo e angustiante.





— Eu estava dor- / Eu estava dormindo!





Quase completou a mesma frase que a sua versão mirim dissera com pouco entusiasmo e um tanto embrandecido. Selou as palavras ao mesmo instante que, devido a um forte estrondo em sua mente, conseguiu perceber que um fragmento de sua memória, que outrora deslocado em seu emaranhado emocional e fragilizado, retornou com a força de uma pancada certeira. De forma involuntária, rendeu um sorriso abobado em sua face, como se estivesse apto a realizar uma grande conquista.





— Você é muito dorminhoco! — Reclamou, assim que tirou os sapatos. — Desse jeito, nunca vamos poder aproveitar o dia bonito que tá lá fora!





Ainda assim, havia alguma coisa estranha naquela atmosfera. O ar pesado não era o redundante. Por alguma razão que desconhecia, sabia que se tratava de sua melhor amiga, Ayane, pelos trejeitos, voz, a forma de vestir e a silhueta de seu corpo. No entanto, parte de sua face estava desfigurada, num sentido que nem mesmo ele conseguia decifrar. Parecia cristalizada e, em seguida, borrada com um pincel d’água.





— Eu queria dormir mais um pouquinho! — Reclamou o garotinho de estimados oito ou nove anos.





— Ah, para! — O segurou pelo braço, a fim de evitar que retornasse ao quarto. — É assim que você quer comemorar o dia de hoje?





— Mas a gente combinou que comemoraria o seu aniversário mais tarde, Ayane! — Elevou a voz em alguns oitavos.





— Você diz isso porque não é o seu aniversário! — Cruzou os braços, irritada.





— ... Ok. Ok! — Bufou, dado por derrotado. — Você venceu, tá legal? Ó, desisti de dormir! — Alegou as mãos em afirmação de sua redenção.





O acompanhante da cena estava achando uma singela graça nas personalidades que lhe eram tão familiares e nostálgicas, como se estivesse estacionado há cinco minutos de uma era tão distante que sequer poderia reviver de novo — e, agora, estava ali, de camarote, acompanhando coisas que nem se lembrava por completo. Por um momento, questionou-se a respeito de sua entidade sexagenária que o acompanhou durante todas as viagens. Não estava ao seu lado, como de costume.





— É isso aí, Yuu! — Sorriu, retomada com a animação de instantes atrás.





Tão de repente, outro lapso memorial percorreu por um retalho doloroso em sua mente. Quase se ajoelhou perante tanto incômodo, com as mãos pressionando a cabeça no intuito de que amenizasse o sofrimento.





“O mundo não será páreo para nós, Yuu, vamos arrebentar tudo!”




Ao que pôde reparar, mesmo que cerrasse os olhos eventualmente por causa da dor, a face da versão mirim de Ayane desmitificou uma parcela da fragmentação que ainda persistia como um todo. Conseguiu visualizar uma parte de seus pequeninos lábios sorridentes e parte das sobrancelhas escuras e finas.





— Vem cá! — Disse o garotinho. — Eu quero te mostrar uma coisa!





— Eu queria falar um “oi” para a sua mãe, antes e— Foi puxada pelo braço.





— Ah, ela não tá em casa! — Sorriu. — Foi fazer compras e eu fiquei em casa dormindo, até que- bem, só vem!





Ambos correram de volta ao quarto do menino, seguidos do acompanhante que já havia se recomposto perante a dor de cabeça. Com um bocado de esforço, o pequeno Yuuta retirou uma pequena caixinha ornamentada com algumas pérolas — de certo, falsas — e um laço vermelho muito mal amarrado, conforme o semblante estranhado de Ayane observou.





— Aqui! — O garoto sorriu de orelha a orelha. — Feliz aniversário, bestona! — Assim que exclamou, levou um cascudo na cabeça. — Ei!





— Não é assim que se trata uma dama, seu grosso! — Ainda que insatisfeita, sua feição converteu-se a um sorriso, pelo que o outro pôde perceber, quando aceitou a caixa de muito bom grado. — Obrigada.





Desajeitada e com pressa, removeu o laço sem muita cerimônia — visto que mal sustentava dois nós. Assim que destampou, manteve-se boquiaberta e surpresa perante o presente de aniversário.





— Gostou? — Inquiriu Yuuta, curioso.





Ao contrário do laço, um cachecol vermelho, muito bem bordado e com barras inglesas, estava praticamente intacto e dobrado como a única coisa organizada que poderia ter partido da vida daquele garotinho tão desajustado, porém, próspero a compartilhar um pouco de felicidade a quem necessitasse.





— Eu- Eu adorei! — De imediato, o removeu da caixa e admirou com uma pegada suave em seu tecido. O amaciou em suas bochechas e, em seguida, o enrolou em seu pescoço.





“Eu sei — também — espero que seja tão especial quanto esse presente que você me deu.”




Em um único estridente despedaçar, toda a cristalização amaldiçoada perante o rosto da menininha converteu-se ao nítido e emocionado semblante que carregava e que o atual Yuuta pôde enxergar com a clareza que tanto necessitava.





— Ayane. — Sorriu consigo mesmo, deixando-se levar por um tom comovido em sua voz.













Mais tarde, entregues à noite estrelada na varanda da casa de Yuuta, ambos os pirralhos degustavam, com direito a uma lambança dos lábios e bochechas, um bolo de aniversário que a senhora Kazami tinha feito questão de idealizar a surpresa que serviu como uma luva às vontades de Ayane. Mesmo com a correria intensa e as poluições sonora e visual da cidade de Goldenrod, a residência dos Kazami não se concentrava no alto centro da megalópole. Ainda que novas construções surgissem na vizinhança e alguns prédios ofuscavam a beleza da natureza aos arredores, era possível contemplar o verde de alguns campos distantes e o horizonte livre, em partes, de obstruções de dez ou vinte andares.





A temperatura era de aproximadamente vinte graus, o que não era tão necessário o uso do presente de Yuuta. Ainda assim, Ayane não se desfez dele desde o momento que o experimentou mais cedo.





— Hum — A garotinha se manifestou, de boca cheia. — Yuuta? O que você vai querer fazer quando for mais velho?





— Eu? Ora, é óbvio! — Repousou o pratinho e o talher sobre o piso da área. — Eu vou me tornar um treinador Pokémon e viajar por novos continentes!





— Eu posso ir junto? — Sugeriu com um sorriso marcado por restos de bolo e de creme de confeiteiro.





— Mas é claro que pode! — Cerrou o punho. — Quanto mais amigos em uma jornada, melhor será!





— Lá na frente, quando estivermos viajando — Ayane inquiriu, perdida entre a imensidão das estrelas que tanto gostava de admirar. — Vamos gostar um do outro?





— Ué, mas — O menininho a encarou com dúvida. — A gente já não gosta um do outro? Somos amigos, não somos?





— Não é desse tipo de gostar que eu tô falando. — Envergonhada, abaixou o rosto e murmurou em um tom que satisfizesse suas bochechas levemente ruborizadas. — É tipo gostar para casar, sabe?





— A- Ah, entendi. — Gaguejou à medida que rolou os olhos para outro canto, a fim de esconder sua timidez. — Bem, eu acho que podemos pensar nisso também.





— Sim. Podemos pensar com carinho, né? — Se aproximou do menino e encostou suas pernas unidas ao lado dele. — Aí, quando nos casarmos, vamos ter que pedir uma música especial na Torre de Rádio!





— Que tipo de música? —Yuuta pareceu no mínimo interessado com a proposta seguida de um roteiro tão elaborado na mente da menina. Pelo menos, era o que a sua versão mirim achava, enquanto o atual ostentou de um breve riso para esconder a vergonha da cena.





— ‘Pera um pouquinho! — Se levantou e adentrou à casa às pressas.





Em poucos segundos, retornou com uma flauta. Yuuta sabia que ela era aspirante à música, visto que sempre quis aprender a tocar algum instrumento. Engoliu em seco na hipótese de ter que ouvi-la tocando sem saber qual era o seu nível de aprendizado.





— Eu não treinei muito, mas desde que ouvi essa música — Ilustrou seu instrumento com uma flanela. — Eu tenho praticado mais! — Por fim, sorriu ao garoto.





— Tô esperando. — Correspondeu o gesto, ainda que um tanto inseguro.





— Tá. — Suspirou profundamente e apossou-se do bocal da flauta.






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Ao contrário do que se imaginava, o início soou mais positivo para o menininho que, aos poucos, teve a sua reação impressionada estampada em sua face desacreditada com o talento de sua amiga. O mesmo pôde se dizer que contou para o espectador da cena que, longe de duvidar do potencial de Ayane, estava mais emocionado por pensar que, um dia, havia esquecido de uma memória tão gostosa de ser revivida.





Mesmo que soasse um pouco melancólica às vezes, Yuuta percebeu o quanto esforço a pequena garotinha depositava, tanto nos trejeitos com a flauta quanto nas expressões de um artista profissional do ramo. Achou graça, mas converteu sua vontade de rir em um olhar encantado e admirado com a melodia que sequer conhecia o nome, mas que soava bem-vinda aos seus ouvidos.





[...] eu sinto orgulho de você, Yuu.”





Tão ninado em outras lembranças que o rapaz nem se deu conta que sua cabeça não o atormentava mais. Foi como se nunca tivesse sofrido por conta de uma amnésia e que, na verdade, estava de volta àquela época e que poderia refazer toda a sua história de uma maneira muito mais agradável.





[...] isso é para você usar em sua primeira jornada, com quinze anos, acho que até lá já vai ter preenchido esse tamanho aí.”





Deixou escorrer uma lágrima por cogitar o pensamento de que, em um determinado momento, praguejou que seria melhor esquecer tudo isso ou, pior ainda, sequer chegar a conhecer tantos momentos inesquecíveis como esse. Era a sua vida passando diante dos seus olhos, afinal de contas. Por mais que nunca tinha pensado na oportunidade de revê-la, faria com que cada segundo valesse a pena.





Enquanto isso, o garotinho arregalou um tanto dos olhos quando percebeu que a menina não havia treinado tanto a respiração e que quase inflava as bochechas rosadas — quase roxas — em busca de fôlego para continuar a canção.





“Eu estarei lá com você para me certificar [...] iremos desvendar esse mundo todo juntos, certo?”





Já estavam sonhando nas alturas, o abobado júnior e o abobado mestre. O último, por sua vez, resgatou a última memória acessível depois de um desastre que ainda o perturbava por não ter qualquer pista, física ou mental, a respeito.





— Ah! — Por fim, Ayane abandonou o bocal. — E aí, o que achou? — Indagou, um tanto arfante.





— Achei que você ia ficar sem ar. — Riu com gosto. — Mas eu gostei muito da música. Como se chama?





— Sonho de amor. — Concluiu, altruísta. — O compositor é Franz Lis- Liz- Lis-alguma-coisa.





— Eu quero ouvir a versão completa algum dia, hein?





— Claro! — Sorriu a menina. — Pode cobrar. É uma promessa!





“É uma promessa!”





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De forma gradativa, um embaçamento espiral percorreu o campo de visão de Yuuta. Em poucos segundos, estava em um completo vazio. Nem mesmo a sua sombra era projetada, por mais que o ambiente compreendesse um branco total.





Tão logo, não muito distante, observou um rapaz de moletom vermelho e uma moça com um cachecol da mesma cor, ambos caminhavam tranquilamente rumo à uma porta dupla. Desesperado, tratou de correr o mais rápido possível para alcançá-los. No entanto, quanto mais agilidade e força depositava em suas pernas, menos conseguia sair do lugar.





Gritou, como se não houvesse amanhã, o nome de Ayane. A todo custo, queria impedir a passagem através daquela maldita porta que bem reconhecia. O cenário, antes esbranquiçado e agoniante, foi ganhando vida à medida que seus pés sequer se moviam do chão. As estantes abarrotadas de livros. O assoalho de cerâmica ilustrado e perfumado. As mesas e cadeiras dispostas aos arredores. Um relógio de parede gigante apontando vinte uma horas e sete minutos.





Julgaria que já estava sem pulmões e a garganta arranhava ao tanto que tentava pronunciar, porém sequer ouvia a sua própria voz. Uma claridade absurda disferiu um incômodo tremendo assim que as portas se abriram.





Quando se deu por conta, já não estava no mesmo lugar. Ao lado de fora, no pequeno lance de degraus da biblioteca municipal à calçada, pôde perceber a calmaria de sempre de ambos indo em direção ao sul. A rotina da cidade estava como de costume, nada de suspeito que levantasse intriga aos olhos inquietos e preocupados do rapaz.





Sabia que alguma coisa devia estar acontecendo, só não soube apontar com precisão onde e quando. A partir de então, na direção em que ambos se encaminhavam, o cenário pertencente as cores da cidade se distorceu em uma fenda escura. De repente, um vulto se estendeu por trás de seu antigo-eu. Algo flutuante, oval e tão grande quanto assustador, pela forma como seus olhos minúsculos e vermelhos encaravam o seu alvo. Do topo de sua cabeça, uma estranha névoa exalava à medida que o contato direto com o menino foi feito.





Em seguida, outra criatura, também sem qualquer contato com o solo — mais semelhante a um emaranhado de nuvens escuras e uma espécie de turbante em seu topo —, entrou em ação ao lado da garota. Num piscar de olhos do acompanhante logo atrás, a garota sucumbiu ao desmaio. Por outro lado, a outra monstruosidade ainda consumia a cabeça do menino, como se estivesse sugando algo primordial para que a separação da dupla naquele instante fosse definitiva.





Incrédulo, Yuuta assistia ao espetáculo de horrores com os olhos trêmulos e com um desejo pulsante de acabar com a gracinha de quem quer que estivesse por trás daquela crueldade. Tão logo, sentiu os pelos do braço arrepiarem quando escutou os passos serenos e decididos atrás de si.





Não conseguiu visualizar a aparência do sujeito, estava entregue à total escuridão. Apenas um sorriso de canto foi desenhado em seu rosto desfigurado. O que soou mais estranho foi o gradativo direcionar do rosto do homem enquanto transitava ao lado de Yuuta. Parecia que ele sentia a sua presença, por mais impossível que o rapaz acreditasse que fosse. De fato, o sorriso vulgar e depreciativo estava sendo direcionado integral e unicamente a ele.





— Ei! — Chamou o rapaz. O sangue inflando as veias e a feição convertendo-se a uma ira descomunal. — EI! VOCÊ!





O sujeito não o atendeu, tampouco cessou os seus passos em direção de seus reais objetivos. Caminhou mais um pouco, até se aproximar o desejado da dupla de adolescentes. Se agachou perante, agora, os dois corpos totalmente inconscientes no chão. Riu de leve e, por fim, retornou o rosto à direção de Yuuta.





Me. Encontre. Se. For. Capaz. Yuuta.





A voz totalmente desequilibrada, mal sintonizada e com um aspecto áspero e sádico estremeceu com as espinhas do rapaz, o que não abalou o seu senso de coragem perante a raiva que sentia por aquele desconhecido na ocasião atual.





— Tic. Tac. Tic. Tac.





De repente, o chão se fissurou em diversas crateras. No que acabou cedendo por completo, Yuuta despencou em uma travessia confusa de uma gama de filetes que, depois de certo tempo, reconheceu que se tratava de todas as suas memórias interligadas no circuito de sua vida. Algumas, no entanto, possuíam algum trecho queimado ou distorcido, outras não se encaixavam com determinada parte ou se deslocavam por um nó das próprias lembranças.





Observou de um tudo pouco. O primeiro aniversário. A primeira queda de bicicleta. O primeiro contato com um Pokémon. A primeira amizade. A primeira nota baixa na escola. O orgulho da mãe na formatura do ensino fundamental. A paixão florescendo pelo mundo Pokémon. Ayane. A determinação de seus sonhos. O apoio dos amigos. Uma nova etapa na vida. A biblioteca. Um arrombo enorme preenchido pelo vácuo a seguir. O sorriso daquele indivíduo. Ayane. O furgão com mais três desconhecidos. Anne. Kai. Neil. A superação de obstáculos. Ayane. O início da jornada Pokémon. As primeiras derrotas. O descontento e a insatisfação. O relacionamento inconsistente com Ayane. A estação ferroviária de Goldenrod. O Croconaw. O comissário de bordo. Outro filete enorme de lembranças sem quaisquer informações visíveis. Memórias perdidas. Seus velhos amigos. O seu último suspiro.





Yuuta.





Yuuta.





Yuuta.





— Yuuta!













ATO 5: SE DEUS, OU ALGUMA ENTIDADE SUPERIOR,
ME DESSE A OPORTUNIDADE DE REFAZER AS COISAS,
(E)U FARIA TUDO IGUAL DE NOVO





— Yuuta! — Mais uma vez, a mãe do menino o estapeou de leve para que despertasse.





— AH! EU PRECISO SABER O- o- espera, o que— Cercado de rostos familiares, especialmente o de sua figura materna, bem como o ambiente reconhecido como o seu quarto, o rapaz encarou todos com falta de clareza. — O que- o que houve? Vocês são vocês mesmo?





— Como assim “nós somos nós”, seu idiota? — Riu Ayane. — É claro que sim, quem mais seríamos?





— Aqui, meu filho. — A senhora Kazami ofereceu-lhe um copo d’água. — Você está pálido feito uma vela e suando frio. Devia estar tendo algum pesadelo. Se acalme, sim? Já passou. — Sorriu.





— Um- um pesadelo? — Piscou os olhos algumas vezes.





De certo, tudo o que relatasse só seria acrescentado para o taxarem como maluco. Embora até mesmo o seu senso tenha questionado uma parcela de coisas, outros acontecimentos foram tão intensos que julgou como reais. Aos pouquinhos, à medida que molhou a garganta seca com goles longos d’água fresquinha, os acontecimentos recentes vinham à tona.





— Como que eu cheguei até aqui? — Devolveu o copo ao criado-mudo. — Não estávamos na estação?





— Você caiu num sono tão pesado que tivemos que chamar um táxi para te trazer de volta para casa. — Explicou Neil. — Sério, nem mesmo uma bomba te acordava naquela hora.





— Por que não disse que estava tão cansado? — Inquiriu Anne, com um tom de voz preocupado. — Nós apressaríamos um pouquinho as coisas para que você pudesse relaxar.





— Eu- Eu não queria preocupar vocês. — Foi a primeira vez, depois de um bom tempo, que Yuuta sentiu o real peso das palavras proferidas. Seguiu com um olhar honesto e um sorriso complacente para todos. — Me desculpem, eu- eu sei que não fui o melhor amigo ultimamente.





— Imagina. Você sempre será o pior! — Exclamou Kai, animado. — Ér, digo, não se preocupa com isso.





— O importante é que você está bem e com as energias recarregadas. — A mãe do menino depositou um beijo em sua cabeça e se levantou da borda da cama. — Não pense que não terá uma festinha com direito a bolo com os seus amigos, ainda temos um bom tempo para isso!













Ainda que próximo das vinte duas horas, a noite estava propícia a um clima de comemoração o quanto antes. A senhora Kazami contou com a ajuda de todos, exceto do aniversariante — uma vez que a confecção do bolo e os detalhes para a festinha teriam que ser uma surpresa, segundo suas ordens — para a preparação da sala de jantar e da cozinha.





Sem saída, Yuuta optou por relaxar as pernas ao lado de fora. Encontrou seu Croconaw dormindo tranquilamente na varanda, sobre a cadeira de balanço preferida de sua mãe. Pensou em tascar lhe um sermão, porém se sentiu mais tranquilo com a sua presença.





Estava tendo uma sensação de dejá vù, para ser sincero. O jardim bem cuidado, a varanda de madeira e o horizonte estrelado e abafado por alguns prédios. Chegou a suspirar com uma ponta de lamentação. Não era possível desfazer de tantas emoções que vivenciou em tão pouco tempo, quem dirá afirmar que não passou de um delírio em massa. A única pessoa que esteve ao seu lado para comprovar isso, ironicamente, era ele mesmo.





Fato este que o levou a uma expressão pensativa, porém com um aspecto positivo em seu olhar um tanto brilhante. Como seria o futuro dali em diante a ponto de imaginar, não sabia mais qual termo denotar para toda essa loucura, a sua versão mais velha conversando consigo mesmo. O que será que acarretaria cada causa que abraçasse em um valor de anos e, por que não, décadas?





Eram tantas questões que somente ele diria com o tempo que parou de pensar nas probabilidades. Viveria cada dia no intuito de ansiar mais pelo próximo. O significado de empatia, inclusive, marcou tanto a sua memória quanto o seu coração para todo o sempre, afirmou.





— Pensando na vida, para variar?





— Ah, um pouquinho. — Riu de leve, assim que reconheceu o frescor tão marcante do perfume de Anne. — Esse cantinho aqui é ótimo para isso, inclusive.





— Se você diz. — A convidada aceitou o assento de prontidão. Em seguida, como o rapaz, apenas continuou observando a imensidão do céu negro com tantos pontilhados brancos à disposição.





— Hoje foi um dia bem louco. — Comentou o jovem Kazami. — Aconteceram tantas coisas à medida que, na verdade, parece não ter acontecido nada.





— Hm, acho que isso ficou um pouco confuso. — Riu com os lábios fechados e tornou o olhar ao garoto. — Foi mais do que um pesadelo, então?





— Muitas coisas se esclareceram para mim, na verdade. Muitas coisas. — Encarou os pés, sem um ponto fixo em seu encarar reflexivo.





— Fico feliz por isso. Mas, talvez — Contou com uma parcela de sarcasmo na voz. — Pode ser que a idade esteja falando mais alto. Dizem que ficamos pensativos a cada ano que se passa, né?





— Não se preocupe. Vou me lembrar de conferir isso no seu próximo aniversário. — Ambos riem com naturalidade.





Seguiram alguns instantes em silêncio. Apenas a brisa noturna os acalentou com uma refrescante sensação de que aquela noite seria mais do que nostálgica. Talvez, inesquecível era o termo correto.





— Sabe — A voz suave da ruiva introduziu novamente. — Você deveria fazer um pedido quando for assoprar as velinhas. Sim, Yuuta. Ela está colocando velinhas no seu bolo, é a única coisa que posso dizer.





— Ah, não. — Esbanjou de uma expressão incrédula e ao mesmo tempo divertida. — Eu já cansei de falar que não preciso mais desse tipo de coisa.





— Ela está tão animada na cozinha que você não faz ideia. — Riu de leve.





— Ô, se faço!





Em seguida, a garota dispensou a feição bem-humorada, abaixou um pouco o rosto e tamborilou suas unhas entre si.





— Reza a lenda de que se você soprar as velinhas e fizer um pedido, do fundo do seu coração, a Jirachi—





— A Estrela das Sete Noites, irá realizá-lo. Certo?





— S- Sim. Eu não sabia que você conhecia essa história. — Sorriu um tanto sem jeito.





— Eu diria que nem eu, mas, de alguma forma, conheço. — A encarou com o gesto correspondido e tornou a encarar o gramado à frente.





— Então — Seguiu de uma breve pausa. — Pode ser que o seu desejo se realize, não é mesmo?





— Sim. Mas, além disso — Se levantou e apoiou no parapeito da área. — Eu quero lutar pelos meus desejos, sabe? Não apenas recebê-los de mão beijada. Eu quero estar ao lado de vocês. Manter a nossa amizade para sempre. E vou me esforçar para contribuir com isso.





— Yuuta, isso é — Surpreendeu-se com uma feição admirada. — Isso é muito bonito. De verdade.





— Bem, eu—






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— Anne! Precisamos de você URGENTE aqui! O Kai queimou a mão tentando espremer uma Chesto Berry!





— Mas — Yuuta se conservou descrente. — Mas como isso é possível?





— E eu sei? — Anne riu com gosto, enquanto se levantava. — Bem, eu já volto, tá legal? Aproveite a vista!





Sozinho, o menino aproveitou para admirar a vasta beleza do universo pela última vez no dia antes de adentrar e descobrir qual seria o tema das velas compradas por sua mãe. Foi um dia e tanto mesmo, pôde comprovar e reafirmaria quantas vezes fosse necessário.





Independente do que acreditava ou deixava de acreditar, faria de tudo para que guardasse, com muito esmero, todas as lembranças. Não apenas dessa viagem sem pé nem cabeça, mas de tudo que experimentava, conhecia e sentia. Não apenas lembraria para sempre como colocaria em prática tudo o que aprendeu e sentiu. Problemas e obstáculos, qualquer um poderia enfrentar, o que incluía ele. Amizades duradouras, no entanto, eram tão raras quanto





Quanto o objeto brilhante que rastejou pelo emaranhado de estrelas por uma fração de segundos. Quase o perderia se piscasse os olhos, mas se sentiu um tanto motivado após a nobre oportunidade de visualizá-lo.





Se tivesse um desejo na ponta da língua, pediria o impossível.





Nunca foi tão divertido vivenciar o impossível.  





.









*





THE END

PUBLICAÇÃO ORIGINAL EM 21/07/2021





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