Capítulo III | Five

Prestes a iniciarem uma jornada ao redor do globo, Anne, Kai e Yuuta e a não menos importante, porém recente integrante, Ayane ainda necessitavam da confirmação da presença de Neil — mesmo que custasse a fuga de sua própria casa.
O início predeterminado foi no vilarejo de Camphrier, no continente de Kalos. Através do Castelo Shabboneau, estavam a um passo de um mar de novas aventuras.
AVISO
Para mais detalhes do que se trata este e futuros capítulos, por favor, direcione-se à seção Cinco, aqui, no topo ou no rodapé desta página.
O PAPO FOI DADO

ATO 1: É TRISTE
Beleza. Acho que isso — Sua conclusão soou em volume quase inaudível, porém, decidido. — Deve ser o suficiente para alguns dias.
Após puxar o zíper de sua mochila lenta e sorrateiramente — apesar de que tal ruído não seria captado com perfeição a quem não estivesse por perto — o garoto remexe seus cabelos negros ligeiramente bagunçados com perceptível nervosismo.
Sua ansiedade involuntária era interrompida, às vezes, para a checagem de mais algum item de primordial importância em sua lista que, por sinal, havia mais riscos do que palavras legíveis para qualquer olho.
Diante de suas prateleiras metodicamente organizadas, dedilhou uma série de livros de suspense e ficção científica. Quase no final da seleção, se deparou com o motivo de alavancar um fraco sorriso e um semblante repreensivo por seu próprio esquecimento.
— Você vem comigo. — Acolhe o livreto em condições abatidas pelo tempo e um bocado surrado. Folheou algumas folhas e reconfortou-se à medida que reconhecia as lembranças de sua caligrafia.
Até determinado ponto, a harmonia apaziguou o ambiente enquanto o rapaz delirava-se em suas memórias transcritas para o papel. Não tardou muito para sua atenção se voltar a dois breves batuques na janela de seu quarto.
Imediatamente, permitiu que a suave corrente de ar invadisse o seu espaço em parceria com um Pokémon muito semelhante a um tordo-americano.
— Está adiantado, Fleth. — Faz um breve cafuné em sua plumagem alaranjada.
Não o julgaria pelo nítido combinado ter sido adulterado pela outra parte, até esbanjou de um pequeno sorriso ao perceber como a pequena ave estava inquieta pelo mesmo motivo que sentira em seu interior.
Fletchinder correspondeu ao toque de seu amigo envolvendo suas asas em torno dos dedos que o acalentavam.
— Aqui. — Assim, o menino o conduziu até um poleiro improvisado (o cabideiro ao lado de seu roupeiro). — Eu já estou quase acabando. Temos que garantir que não esquecemos nada e, acima de tudo, que o silêncio é criticamente importante.
Em mais uma geral pelo seu espaçoso e receptivo quarto, encarou o móvel ao lado de seu Fletchinder. A seu critério, já tinha arquitetado o número suficiente de peças de roupas e, além disso, sua mais condecorada vestimenta já o acompanhava a qualquer canto.
Num dos bolsos de seu jaleco tipicamente mal passado, revirou com o tato apenas para reconhecer se carregava as chaves das entradas e saídas menos frequentadas por qualquer um da casa.
Nostálgico, perdeu mais tempo do que deveria mergulhando-se em alguns pôsteres e cartazes pendurados na parede.
O primeiro, bem que conquistou os detalhes do ocorrido, remetia a um conserto de um pianista e uma violinista que, em sua humilde opinião, gostaria que o musicista não transparecesse tanto peso sobre as teclas.
O cartaz ao lado, paralelamente sobreposto, remetia a quantidade de horas inesquecíveis que foram dedicadas a um de seus jogos favoritos. Além disso, sempre admirou uma das primeiras artes que divulgaram ao público — a mesma que conseguiu garantir uma cópia para a parede de seu quarto — e poderia analisar a beleza do farol em contraste com o brilho da Lua por muito tempo.
— Espero que a continuação seja tão boa quanto este. — Suspira, após trazer-se de volta à realidade.
Em cima de sua escrivaninha, pode desconsiderar a quantidade absurda de mangás empelotada para a viagem, além do copo de café que, de longe, poderia sentir que estava frio e amargo. Apesar de que ainda tinham muitos volumes inacabados, sua feição descontentou-se ligeiramente com o fato.
— Ok. Tá tudo certo, Fleth. — Acena positivamente ao pássaro. Este, por sua vez, desempoleira-se do cabide e reúne-se ao ombro do menino.
Entretanto, antes de sua partida, moveu-se lentamente ao canto do quarto. A acústica projetada para o ambiente o permitiu com que despejasse seus dedos lentamente sobre algumas teclas de seu piano, um modelo referência da Steinway & Sons — não se lembrou do ano de fabricação, mas não fazia mal.
Sobre a tampa, remexeu uma série de discos de artistas famosos da música clássica — a qual tanto admirava e contemplava. Nomes incontestáveis como Beethoven, Chopin, Strauss e muitos outros estariam eternamente em sua mente, não precisava de uma capa de CD para se relembrar.
Bem ao canto direito, quase escondido, um porta-retratos o chama a atenção. Apesar de envelhecida e enrugada, a foto transmitia com clareza a infância do rapaz. Se a memória não o falhava, justamente no dia em que este presente musical fora concebido para o seu refúgio de todas as horas.
Ainda, abraçado às figuras paterna e materna, ajeitou seus óculos com auxílio do indicador, um tanto incrédulo e frustrado ao perceber o quão estridente seu sorriso se destacava para a fotografia.
O recolheu, por fim. Era hora de partir.

ATO 2: A DESPEDIDA
— Droga, Ayane! Eu falei que a gente ia se atrasar! — Pela afobação e os passos apressados, a voz do rapaz se fez presente pela crítica importância ao tempo restante.
Sendo praticamente arrastada com o auxílio exagerado e desesperado da mão do menino, Ayane mantém seu semblante descrente com a situação.
— Ainda temos quarenta minutos, Yuuta! — Defende-se, trazendo seu braço de volta ao seu voluntário controle. — Além do mais, a estação de trem não fica muito longe daqui!
A ênfase no tempo restante e na distância consideravelmente curta — até porque ambos conseguiam visualizar a torre de relógio da estação da posição em que se situavam — Yuuta reconsiderou uma caminhada mais tranquila após um breve riso sem graça.
Além disso, o movimento na avenida pela qual trafegavam era passível de qualquer acidente se continuassem no ritmo desenfreado. Além da absurda quantidade de pedestres, tanto o garoto quanto a menina podiam observar muitos treinadores nitidamente vindos de outras regiões que sequer conheciam, além de muitos trajarem um gorro de Natal.
— Ei, olha ali. — Discreta e curiosa, Ayane chama a atenção de seu companheiro pelo cutucar no braço. — Que Pokémon é aquele?
Yuuta é convidado a reparar em um treinador bem jovem e contente ao lado de sua criatura bem chamativa e de olhos arregalados. Pareciam muito motivados a explorar cada canto do gigantesco município, por sinal.
— Ah, é um Tangrowth! — Sorri à menina. — Podem parecer assustadores à primeira vista, mas dizem que são muito simpáticos.
À medida que subiam pela avenida, além de terem de conceder ou pedir a licença para atravessarem o tumulto de pessoas, Ayane questionou sobre outros Pokémon desconhecidos que vira até então.
Os mais inusitados, em sua opinião, foram um Shellgon, devido à sua aparência consideravelmente maligna, uma Altaria — a qual tiveram de parar a sua dona apenas para a menina sentir a maciez das asas do Pokémon dragão — e uma Fennekin, de uma moça muito simpática que também se intitulou viajante e aspirante à descobridora do mundo.
Para Yuuta, não era difícil demonstrar seu conhecimento nas mais diversas espécies e, na verdade, era até divertido e proveitoso vê-la se interessando mais a fundo por tal mundo.
Sem mais, viraram a esquina pretendida para alcançarem o seu destino. Além de poderem observar a construção ferroviária mais de perto, um pouco antes podiam se deslumbrar com a fachada do maior cassino da cidade. Uma pena, entretanto, estar com todo o seu aparato luminoso desligado — o que seria inútil ativá-lo durante o dia, confirmaram.
Yuuta pode perceber que sua amiga fixara a mão com mais força em sua bagagem de rodas, assim como o sorriso travesso que ela desenhara em seu rosto.
— Eu aposto que você não me alcança! — Sai em disparada. O rapaz a encara com incredulidade e graça e a acompanha na sua inusitada corrida.
Nesse aspecto embalado por risos e desvios de bicicletas transitantes pelo caminho que Yuuta e Ayane deixariam a cidade de Goldenrod — lar de toda e qualquer oportunidade possível, além de sua destacável imensidão a ponto de cambalear turistas com seus diversos arranha-céus, sua abrangência de inúmeras marcas residentes em departamentos comerciais e embalada de dia à noite com frequência para todos que sintonizarem as ondas das mais variadas rádios transmitidas para o lazer e a informação dos habitantes.
Não demoraram para circularem pela centenária placa de madeira indicando a Estação Ferroviária Intermodal da Cidade de Goldenrod. Ainda que o recinto contasse com uma reforma tecnológica perceptível a ponto de encher os olhos de qualquer um de primeira viagem, aspectos como a torre da estação e sua primeira placa foram mantidos para preservar a tradição do local.
— Ah, enfim — Após a arfada triunfante com as mãos descansando sobre as coxas ligeiramente inclinadas, Ayane sorri perante à construção. — Chegamos!
— Onde foi que você – aff, aprendeu correr tão rápido assim?!
Quase entregue à exaustão e com os pulmões desidratados, o rapaz a encara com certa incredulidade e, acima de tudo, com a sensação de vexame por ter sido derrotado em uma questão tão simples.
— Bem, não é novidade você perder para mim, não é mesmo? — Desliza o indicador até a ponta do nariz do menino em um ligeiro tom provocativo e com um sorriso vitorioso estampado. — Bobão!
— Por que a gente não resolve isso enumerando os Pokémon catalogados na Pokédex? Aposto que você ficaria no— É interrompido.
— Já sei! Já sei! — Exclama Ayane em alguns meros oitavos elevados. — Não precisa repetir todo esse ritual gravado nesse seu cabeção! Vamos logo!
Entre risos e caçoas, o casal adentra à estação ferroviária. A primeira coisa perceptível para ambos foi o exacerbado movimento — tanto de ida quanto de volta, aparentemente — e a quantidade de rostos desconhecidos que sequer tinham certeza de que eram cidadãos de Goldenrod.
Em seguida, Yuuta tenta localizar algo primordial em seu campo de visão. Além do guichê de passagens que já havia avistado, também mentalizou a localização das filas destinadas ao seu destino e cogitou memorizar algumas máquinas de conveniência mais ao fundo — uma vez que tinha certeza de que a menina pediria algo.
— Hm? — Como previsto pelo rapaz, Ayane direciona seu olhar às guloseimas coloridas e chamativas. O local de inserir uma nota nunca foi tão apreciado diante de seu semblante realizado e eufórico. — Ah! Yuuta!
Antes mesmo que precisasse o cutucar até o desconforto, o rapaz compreende a mensagem e acena para que não demore muito perante à máquina.
— Hã, agora, eu — Olha aos lados. Pelo visto, a razão de sua procura ainda não estava finalizada ou poderia se considerar perdido. — Onde que a gente tinha combinado mesmo?
Não tardou muito para visualizar um semblante sorridente e repreensivo acenando-o constantemente em meio à multidão. Logo culpou-se por esquecer o local de encontro pretendido — especialmente próximo ao balcão de informações.
— Imagina se eu te deixasse para resolver isso por conta própria, hein? — Apesar de seus olhos verdes o encararem com ligeira graça, sua autoridade de mãe instintivamente arqueou uma das sobrancelhas perante o menino.
— Ah, a Ayane estava me distraindo e — Percebendo que a desculpa não ia colar, Yuuta suspira pesarosamente. — Ok, a senhora venceu. Eu estava um pouco perdido, sim!
— Bem melhor. — Sorri, convencida. Adiante, retira, de sua bolsa, dois tickets grafados com o selo da companhia ferroviária.
Tais ingressos que esbugalhavam os olhos castanho-escuros do menino à medida que se aproximavam de serem entregues em suas trêmulas mãos — ainda que se comportasse de maneira altruísta e independente, a fim de transparecer digno da confiança da difícil, porém, compreensiva Naomi Kazami, sua figura materna.
— Aqui está. — Assim que os documentos de ingresso estão em pose do rapaz, a mãe continua o alerta. — Está tudo aí mesmo, certo?
— Chequei, no mínimo, cinco vezes! — Sorri. Ao menos, isso poderia confirmar sem hesitação que a integridade de seus pertences estava em cem porcento.
— Assim que chegar, dê sinal de vida! — Ajoelha-se perante o filho. — Uma ligação, uma mensagem, qualquer coisa!
— Como se eu não soubesse que a senhora atravessaria o continente atrás de mim caso eu não fizesse isso, né? — Além do tom descontraído, Yuuta ri com o próprio comentário.
A mulher acaba cedendo a uma breve risada também. Por conta disso, apoia suas mãos sobre os ombros ligeiramente encolhidos do menino e os endireita.
— Que bom que sabe, meu filho. — Assim que desvia seu olhar por breves instantes, enxerga Ayane um tanto empolgada ao retirar algumas barras de chocolate de uma máquina. — Cuide bem da Ayane, hein?
— Eu jamais deixaria acontecer algo com ela, mãe.
A senhora Kazami não contestaria o tom de honestidade e firmeza imposto pelo menino. Poderia depositar sua confiança no semblante determinado do menino, tanto ao seu pedido quanto à, enfim, sua jornada.
Por fim, observou o menino da cabeça aos pés. Ainda que seu senso materno instigasse a visualizar algo fora de seus parâmetros — como alguns fios de cabelo desalinhados e o casaco vermelho levemente amassado que fez questão de ajeitá-los com seus delicados toques — não podia mais obstruir em nenhum detalhe que faltasse ou estivesse presente.
Ponderaria algum comentário com relação às sandálias do estilo crocs que Yuuta calçava, mas não o fez. Apenas desenhou outro sorriso amável em sua face enquanto o encarava.
— Então, acho que já está na hora, né? — Apesar de que o menino se sentisse desconfortável ao antecipar a despedida, se fez necessário.
Subitamente, é recebido por um previsível, entretanto, forte abraço. O poder transmitido pelas mãos de sua mãe o apertando pela última vez até um intervalo de tempo indefinido era proporcional à saudade que começava a efervescer em seu interior.
— Aquela casa vai ficar tão solitária sem você. — Sussurra enquanto afaga os cabelos do filho. — Parece que eu terei que aprender sobre as batalhas Pokémon sem seu falatório me explicando cada detalhe.
— Não fica assim, mãe. — Apesar de não ser muito bom em reconforto, suas palavras soaram suavemente aos ouvidos da mãe. — Quando eu voltar, poderei te ensinar muito mais coisas que aprendi por esse mundo.
Assim, se desvencilham lentamente. Yuuta pode perceber os olhos marinados da mulher — que, à sua concepção, era tão rígida e consolidada que nada a abalaria — e, involuntariamente, sentiu um ardume doloroso ao piscar excessivamente à frente de Naomi.
— Eu sei que vai, Yuuta. Eu sei que vai.
Seu sorriso, em meio de seu rosto esmorecido pelas lágrimas e marcado pelo sentimento de tristeza simultâneo com o de realização, pode atribuir o lugar que suas palavras não conseguiam se conectar.
— Até mais, mãe. — Estende a mão para a mulher, no intuito de realizarem seu ato de cumprimento um tanto diferente e marcante para ambos.
— Fique bem, Yuuta. — Em correspondência, a mãe une o polegar do menino e começam a se apertar um sobre o outro até se reunirem em suas digitais.
— Atenção, senhoras e senhores passageiros! O trem de número 2412 com destino a cidade de Camphrier, no continente de Kalos, tem sua partida programada daqui a dez minutos e trinta e seis segundos. Por favor, dirijam-se à plataforma correspondente para o procedimento de check-in com seus bilhetes em mãos!

ATO 3: ADEUS
A serenidade das águas marítimas e o aconchego da noite totalmente limpa e acobertada por emaranhados dançantes de incontáveis corpos luminosos caracterizavam o ambiente longe da civilização inquietante e da tecnologia incessante. A sonorização contemplada baseava apenas no chocar do mar contra uma cadeia de rochas ou algum miado distante de um Alolan Meowth.
Em algumas palmeiras espalhadas pelo ambiente praieiro, algum Oricorio aquietava-se entre o abraço das folhagens para sua próspera noite de sono.
Diante da areia umedecida e compartilhada para as ondas da baixa maré, os pés morenos, descalços e ligeiramente apressados embarcam suas pegadas momentaneamente até que a água as desfizesse.
— Malie ke kai. Lā maikaʻi. — Logo atrás do rapaz entusiasmado em sua caminhada frenética pela margem, uma mulher sorri ao sentir a brisa fresca recebida por seu corpo parcialmente nu (trajando apenas lenços de linho e fibras naturais como apetrechos para suas intimidades).
Do havaiano: O mar está calmo. O dia está bom.
— Hauʻoli loa ʻo Kai. ʻOi aku kēia. — A figura feminina estava acompanhada de um homem, este com alguns aspectos físicos que remetiam muita semelhança ao menino mais à frente, apesar da idade mais notória.
Do havaiano: O Kai está feliz. Isso é melhor.
Descompromissado com o momento, o casal apenas admirava o recanto natural que a Ilha de Melemele os proporcionava e, também, a graça e felicidade estampadas nos trejeitos de seu filho.
Mais atrás, um Pokémon surge entre os dois adultos com considerável pressa. Ainda que suas pernas fossem curtas e seus passos um tanto desajeitados, seu esforço era nítido para alcançar seu amigo à frente.
— Poli! Poli! — O agravante em sua voz ligeiramente grossa emana com vontade ao perceber sua aproximação pretendida.
— Até que enfim, Poliwhirl! — O rapaz sorri perante o seu parceiro, até se cumprimentarem com uma leve batida de punhos.
Assim, resolve parar no ponto em que considerava ideal. Não muito longe, uma rocha inclinada perante a areia servia de trampolim caso alguma ideia conturbada e promissora percorresse por sua mente.
Diante do melhor cenário para a ocasião, inspira o ar profundamente enquanto desalinha seus longos dreads e se contenta com um semblante generoso por longos segundos paralelamente à sua visão que se perdia à imensidão do mar iluminado pelo magnânimo reflexo da Lua.
— Malie ke kai. Malie nā mea āpau. — Assim que diz consigo mesmo, torna a sua atenção para os seus companheiros familiares que ainda estavam para chegar.
Do havaiano: O mar está calmo. Tudo está bem.
— Mais um pouco e você sumia de nossa visão, Kai. — Sua mãe ri após vê-lo finalmente estagnado.
Apesar do tom cômico, a mulher podia compreender a ansiedade que Kai até concentrava em controlar — para não dizer abster completamente — e o motivo por trás dela.
Vários Wishiwashi circulavam de volta às profundezas das águas assim que eram notificados de presença humana nas proximidades. Além disso, um ou outro Mareanie se infiltrava em meio às plantações aquáticas a fins de uma possível camuflagem.
— Bem, este parece ser um ótimo lugar. Permita-me, makuahine! (Do havaiano: mãe.)
Ao lado do homem, uma velha senhora concede-lhe uma pequena cesta trabalhada em fibras de palmeiras e na borracha dos pinheiros.
— Makemake wau i kahi ʻahaʻaina nui. — Apesar de que sua arcada dentária nitidamente foi corrompida pelos longos anos, a velhinha ostentou do melhor e mais simpático sorriso que poderia.
Do havaiano: Eu espero uma grande festa.
— Com certeza. Hoje, estamos aqui pelo nosso filho! — O pai chama a sua atenção, com um sorriso expositivo. — Sem mergulhos por enquanto, Kai! O banquete vem primeiro!
— Eu nem tinha pensado nisso mesmo! — O menino dá de ombros ao ser interrompido em seu passatempo com seu Poliwhirl.
Aproveitando a brecha, o Pokémon aquático dispara um feixe de água de seu vórtice diretamente na cara do moreno.
— Ei! Isso não valeu! — Traz uma braçada de água na direção de seu inimigo. — Toma essa, seu aproveitador!
— Poli’whirl! Poli! Poli! — Levanta os braços, aparentemente animado por ser banhado ainda mais com o gostinho da vitória pelo ataque surpresa.

Depois de ligeiros minutos, a família estava prestes a saborear o banquete improvisado pela senhora Mansur e o senhor Hani. Enquanto isso, Kai contava uma de suas aventuras escolares envolvendo a confusão com desenhos e o professor Pe-Pedro — caham, desculpem-me pelo gaguejo — para a sua avó. Apesar da velha não compreender muito devido a euforia do menino, estava satisfeita em ouvi-lo com tanta empolgação.
— Que nós descobrimos que tipo de desenhos ele guardava naquela pasta, nós descobrimos. — Gaba-se um bocado, gozando de um sorriso triunfante apesar de seu semblante culpado recordar-se com peso da consequência.
— Espero que também se lembre de sua orelha vermelha durante esses três dias de suspensão. — Ainda que o tom da mãe fosse divertido, sua posição exerceu de um alerta para futuras ocasiões não existirem, de preferência.
Enquanto isso, Kalani Hani desembrulha uma travessa de argila e os convidados são recebidos pelo atenuado aroma do molho de soja e do frescor do gengibre sobre uma porção de peixe cru com Ginema Berries.
— A aparência está ótima. — A feição de Moana Mansur se rende à ótima apresentação do prato.
— O crédito vai totalmente ao Kai. O tempero e a montagem foram ideias dele. — Responde o pai, ligeiramente orgulhoso.
— Aprendi com a melhor na cozinha, na verdade. — Concede uma piscadela para a mãe, a qual ostenta de uma gostosa risada com a situação.
— A cozinha é um dom desta família, é fato. — Comenta Malia, a avó do menino que, embora estivesse com os olhos praticamente cerrados devido ao rosto definhado pelas rugas e linhas de expressão, se manteve atenta desde o princípio.
Além do Poke preparado por Kai, também prepararam uma variação da típica salada de Pinap Berries com repolho. Indispensável também uma generosa porção de salada de frutas como Mago, Wiki, Figy, Oran, Leppa e Rawst Berries. Como em qualquer outra ocasião comemorativa, não faltaria a bebida Mai Tai.
Para Kai, o menos desejado certamente era um prato de Haupia. Mesmo que sua mãe tivesse preparado o pudim com tanto carinho, a quantidade de açúcar e creme de coco impediam de fazê-lo gostar da iguaria.
O banquete seguiu sem pressa, delongando-se em risos e conversas que normalmente teriam em qualquer outro momento. Eventualmente, o assunto a respeito da jornada do filho da família era recorrido como pauta.
— Ao menos, ele saberá se virar com qualquer fogo e todo tipo de alimento em sua viagem. — Diz Moana ao observar o menino oferecendo um sanduíche natural ao seu Poliwhirl, num acentuado tom abatido pela véspera da partida de seu menino.
— Nosso filho é forte. Ele saberá se virar em qualquer momento. — Reforça o pai, unindo suas mãos com as de sua esposa.
Enquanto isso, a vovó Malia não deixou de admirar o peso da ingenuidade e da responsabilidade contrasteadas nos atos brincalhões e cuidadosos de Kai com seu Pokémon. Para ela, era evidente que aquela personalidade teria tantos obstáculos para tamanho sonho.
— Kai. — A rouca e generosa voz da mulher o chama. — Venha aqui, querido. Chegue mais perto de sua kupunawahine.
Do havaiano: avó
Sendo assim, um teco curioso e animado, o moreno se aproxima da velha senhora. Com as mãos trêmulas e dedos enrugados e manchados, a mulher as posiciona sobre os cabelos de Kai, fecha os olhos e recita alguma curta oração em inaudível som.
— Eu quero te falar uma coisa, Kai.
Sem objeções, o rapaz demonstra atenção a cada palavra e gesto de sua avó.
— O mundo não é um mar de rosas. Ele é um lugar ruim e asqueroso. — Suspira pesarosamente. — E você é um menino. Um menino cheio de sonhos.
O silêncio se fez necessário por breves instantes. Enquanto isso, Poliwhirl se senta no colo do menino.
— Não importa o quão forte você seja, apanhará e ficará de joelhos, e ficará ali se permitir. — Abaixa a cabeça. — Nem você, nem ninguém baterá tão forte quanto a vida.
Dado o peso proferido pelas palavras de Malia, Kai engole seco. Sabia que sua avó era de poucas e, quando realmente necessitava da fala, importantes palavras.
— Não importa o quão forte você possa revidar. E, sim, o quanto poderá levar golpes e continuar em frente.
Adiante, a mulher levanta a cabeça lentamente e encara o céu estrelado com um semblante agradecido.
— Este lugar é cheio de coisas ruins. Mentira. Preconceito. Vazio. — Dirige o olhar a Kai. — Mas existem coisas lindas que você sempre deve buscar para te fortalecer ainda mais.
— E assim é a vida, Kai. — Complementa a mãe, com a feição comovida.
— É uma responsabilidade que você provou estar pronto para enfrentar, meu filho. — Adiciona o pai, o admirando com dignidade.
Kai concorda e dirige o melhor de seus sorrisos para todos, ainda que estivesse um bocado transtornado pela informação que caíra sem piedade sobre seu consciente. Ainda com isso, não teria medo ou repulsa de enfrentar o que estivesse o esperando.
De qualquer forma, as ondas do mar o acalmavam gradativamente. Afinal, enquanto o mar estivesse calmo, ele também estaria.

ATO 4: PARECE O FIM
Aguardando impacientemente na sala de espera, seus pés inquietos batiam contra o chão enquanto ora encarava o alerta de gravação em andamento, ora tamborilava seus dedos de forma intensa.
Algumas mechas de seus cabelos ruivos se encontravam encaracoladas de tanto que já havia as enrolado contra os dedos e, daqui a pouco, não restariam unhas para contar história deles.
— Ai, ai. Será que vai demorar muito? — Levanta-se mais uma das inúmeras vezes que já havia perdido a conta.
Normalmente, conseguiria captar o ruído de algum microfone ou do equipamento de áudio denotando alguma cena em andamento. Longe disso. Estava tudo quieto demais.
Depois de pesarosos minutos, finalmente pode ouvir algumas risadas descontraídas se aproximando da porta. Quase se explodiu de contento por rever Pether Morgenstern — não pela sua aparição em si, mas pelo tempo consumido de maneira cruel por sua espera.
— PETHER! — Avança aos braços do homem para um longo e apertado abraço.
Salvo pelo gesto, o diretor não precisou recordar-se do nome da garota por ter seu fôlego pressionado com tanta força pela união de seus braços.
— Não tem ideia de quanto tempo eu estou esperando aqui!
— Olha, eu — Desvencilha-se do abraço. — A porta estava aberta na verdade e — Logo, observa um detalhe crucial na parede. — Ah, esse letreiro indicativo está com defeito! Tem três semanas que estamos para trocar isso, mas como é de costume entrarem pelos fundos, sabe como é, né?
— Quer dizer que- que eu estava aqui plantada há uma hora e quarenta minutos enquanto vocês não faziam nada lá dentro? — Pergunta, um tanto embasbacada e incrédula.
— “Nada” não é bem o termo correto. — Ajeita a gola de seu sobretudo. — Estávamos numa partida de canastra acirradíssima valendo o estúdio Mah Boi e— É interrompido.
— Como é?! — Arregala os olhos diante de tamanha indignação.
— Por que você simplesmente não bateu na porta? Com certeza, alguém teria ouvido.
Indiferente e simples, o homem retira um maço de cigarros do bolso de seu sobretudo. Apesar da controlada e passageira vontade de compactuar com o vício, achou mais conveniente guardá-lo de volta na presença da menina.
— Então, devo adivinhar o motivo da sua visita? — Pether arqueia uma das sobrancelhas. — Pelo que me lembro, tínhamos combinado de nos vermos depois de um ano a partir da data do meu último aniversário.
— Ah, pensei que tinha renunciado essa ideia. — Apesar da seriedade transpassada pelo outro, a ruiva ri de leve com seu comentário.
— E quanto ao restante daqueles jovens enxeridos e seu cachorro falante, não vêm? — Escora-se na parede após avaliar o restante do grupo como ausente.
— Hã? — Pisca os olhos algumas vezes, ainda na esperança de absorver algo que fizesse sentido.
— ... espera. Acho que troquei as bolas. — Dito isso, o diretor estrala seus dedos até a exaustão do gesto um tanto agoniante para Anne. — Enfim, o que te trouxe até aqui?
— Eu- hã, bem — Desvia o olhar vaga e lentamente. — Será que a gente podia falar disso enquanto você me leva para um café muito agradável aqui por perto?

O caminho até o local referido por Anne não consumiu muito tempo da suposta atarefada vida do senhor Morgenstern.
Apesar de algum reclame aqui ou ali, em um momento ou outro, Pether acabou cedendo a afeiçoar-se com um semblante levemente sorridente ao presenciar a graça e euforia da garota com sua Pokémon fantasma pelas ruas.
Ainda com isso, o vento gélido e a estação invernal espatifavam seu cachecol contra seu rosto sem nenhuma objeção — o que soava um bocado irritante, assim como o inverno, em sua concepção.
Claro que Anne ria e comentava algo carregado com suas serelepes atitudes a respeito de qualquer desaforo acentuado por ele sobre o clima, o cansaço de andar apenas três quadras ou até mesmo sobre qualquer individuo alheio que transitasse por perto.
Aconchegados ao lado de dentro da cafeteria — uma vez que o senhor Morgenstern jamais escolheria uma das mesas ao ar livre — a dupla aguarda pelo garçom (ou garçonete) mais próximo(a).
O tempo de espera até o profissional se aproximar de sua mesa foi o suficiente para Anne reparar e admirar a singela decoração natalina pelas paredes e nos adornos festivos sobre o balcão e nos parapeitos das janelas.
Por mais que o Natal não fosse uma comemoração ávida e forte em sua terra natal, ainda mantivera algumas lembranças de muitas outras formas de apreciá-lo pelos lugares nos quais viajou nos últimos anos. Uma guirlanda que seja, ou até mesmo uma simples mensagem de Feliz Natal bordada em algum canto, já eram o suficiente para agradar o seu semblante.
— Em que posso ser útil, madame? Senhor? — De prontidão, a voz do garçom traz a menina ruiva de volta à realidade.
— Me vê qualquer coisa que esquente esse pobre coração e estômago amargurados pelo frio, vai. — Diz Pether, sem muito objetivismo diante da lista de opções em sua frente.
— Eu gostaria de experimentar esse cappuccino com creme de avelã e uma pitada extra de canela, por favor. — Anne sorri ao devolver o cardápio ao atendente. — E, para ela, o mesmo, mas — Na dúvida, reabre a pequena pasta com os pedidos. — Poderia substituir a canela por gotas de chocolate?
— Sem problemas, senhorita. — Corresponde o gesto e aceita o cardápio de volta. — Um instante, por gentileza.
Assim que o rapaz se dirige à cozinha, Anne volta a brincar com um pequeno globo de neve sobre a mesa e, involuntariamente, impressionar Misdreavus com a neve de pedaços de papel estilhaçados sendo sacudidos dentro da esfera.
— Eu passo por essa rua tem quase 20 anos e nunca reparei nesse lugar. — Um bocado impressionado com o acabamento e a personalização aconchegantes do local, Pether murmura consigo mesmo.
— Então, acho que escolhi o lugar certo para hoje, não? — Anne concede uma piscadela.
— Ah, ainda é cedo para dizer. — Encara em direção da cozinha. — Espero que aquele sujeito acerte no meu pedido.
— Nada específico, por sinal, né?
— A questão é — Debruça seus braços sobre a mesa. — O que você tanto gostaria de conversar comigo?
Ainda que mantivesse a feição sorridente e ovacionada com a situação e em seus mínimos detalhes, pode se comprovar que os lábios da menina foram minimizando seu sorriso ao passar dos segundos.
— Ah, é verdade. — Ri extremamente de leve. — É que, hã- bem, como eu posso te dizer isso?
— Hm, talvez possa me mandar por escrito. Não tenho pressa. — Dá de ombros.
— É que eu pretendo iniciar a minha jornada Pokémon em breve. — O encara fixamente, aguardando que sua objetividade e seu lado direto fossem o suficiente para expor o que realmente gostaria de dizer.
— Ahn, ok. Boa sorte?
Ambos se calam assim que o garçom retorna com os seus respectivos pedidos para a felicidade de Misdreavus que, por sinal, foi a primeira a avançar contra a sua generosa xícara coberta por chocolate.
Com auxílio de um canudo, Pether remexe seu copo e cheira algumas vezes o conteúdo, um bocado desconfiado. Após provar, pode constatar que a cozinha realmente acertou no que nem ele mesmo sabia que gostaria.
— Olha, isso aqui está muito bom! — Sorri consigo mesmo, em seguida de uma nobre golada de seu cappuccino.
Dentre este curto intervalo, a garota manteve seus cotovelos apoiados sobre o móvel e as mãos unidas escondendo seus lábios que, vira e mexe, tinham o anseio de falar algo mas não conseguiam.
Passados alguns pesarosos segundos após sua exagerada degustação, o senhor Morgenstern percebe que Anne sequer tocara em seu pedido que fizera com tanta ênfase.
— Acho que vai esfriar, garota. — Aponta à xícara que, por sinal, emanava menos vapor do que anteriormente.
Sem resposta, o homem a estranha, desenhando uma expressão levemente cerrada ao seu comportamento totalmente diferente de momentos atrás.
— Bem, nesse caso, acho que vou pedir uns caneles para viagem. — Se levanta. — Quer mais alguma coisa? É por minha conta.
Como não obteve nada além do silêncio, dá de ombros mais uma vez e atravessa o campo de visão da garota.
— Eu estou com medo.
O tom de voz da menina soou mais pesado e amargurado do que Pether pode se recordar em alguma cena de gravação envolvendo qualquer drama que tivesse planejado. Ao cessar seus passos imediatamente, vira-se para Anne e arregala, não em total, seus olhos.
— Como é?
— Eu estou com medo.
— De iniciar sua, hã, jornada? — Senta-se novamente, sem tirar o olhar do semblante tristonho da garota.
— Não se preocupe. — Expõe um fraco sorriso acompanhado de seus olhos levemente marejados. — Esse sentimento sempre me assola quando estou prestes a viajar para qualquer lugar.
— Eu entenderia se estivesse ansiosa ou desesperada, mas com medo? — Move uma mão até a boca e se concentra em uma posição pensativa. — Aqueles seus amigos também vão viajar com você?
— Sim.
— Então, eu não consigo entender por que você se sente assim. — Exaspera em alguns oitavos elevados.
— A gente combinou que nosso ponto de partida seria da minha casa, amanhã.
— Isso não é bom?
— É muito bom, mas — Morde os lábios, com os olhos trêmulos. — Eu nunca pensei que diria isso, mas sinto um pouco de inveja deles.
— Inveja?
— Um pouquinho, só. — Ainda que esbanjasse de uma curta gargalhada, não conseguiu se convencer de que havia sido para o lado positivo.
— O que eles têm que você não tem a ponto de sentir “um pouquinho” de inveja, afinal de contas?
— Uma família.
Apesar de não contar com nenhum espelho, Pether poderia comprovar que seu rosto empalideceu perante o ar pesado que Anne transmitira em sua curta e falha voz. Mesmo assim, a podia visualizar com um sorriso levemente quebrado e esperançoso de se manter no mesmo ritmo, ainda que algumas lágrimas corriam por suas bochechas.
— E-Eu imagino que isso pode parecer bobo para você, mas — Emite uma breve pausa, convencendo-se a cessar suas impiedosas e doloridas lágrimas. — Deve ser tão bom poder compartilhar dessa futura experiência ao lado de um pai e de uma mãe.
Pether não contestou, por mais que desfrutasse de um sentimento familiar ao sofrido pela menina. Jamais ouvira falar e nunca fora atrás de seus pais biológicos e, somando a isso, sequer tinha ciência se estavam vivos.
— U-Uma bronca, que seja, sabe? Um alerta de perigo pelo que a gente pode enfrentar nessa viagem. Um puxão de orelha por nos relembrar de uma escova de dentes antes de partirmos.
Seus cabelos ruivos servem de aconchego aquecido quando são envolvidos involuntariamente ao abraçar sua Misdreavus sobre a mesa.
— Eu- eu não tenho nada disso.
Mesmo que desse o braço a torcer, o homem pode sentir um desconfortável ardume em um de seus olhos — e certamente não era por conta do clima frio e seco.
— A senhora Margareth e o senhor Archibald sempre cuidaram de mim. — Pela primeira vez durante o diálogo, ostentou de uma feição honesta ao contento por trazê-la em suas memórias. — Apesar de que eu dei muito trabalho para os dois.
Em seguida, deita seu olhar para sua Pokémon que, por sua vez, a encarava com ar de preocupação e súbita tristeza.
— Sempre pude contar com você também, nos melhores e piores momentos. — Sorri, balançando as pérolas do colar de Misdreavus com seu indicador.
Por fim, direciona sua visão para Pether — apesar de marcados por lágrimas, não usava qualquer lente de contato colorida — e concede um pobre sorriso.
— E, agora, eu tenho você.
Daqui a pouco os globos oculares do diretor não poderiam mais se expandir, diante de tamanha perplexidade perante à moça.
— Eu acho- eu acho que nem sei o que te dizer, Anne. — Reúne as mãos nervosamente sobre a mesa.
— Não tem problema. — Limpa os caminhos trilhados por suas lágrimas e desenha outro sorriso. Ainda que Pether não conseguisse distinguir o adjetivo para cada um deles, reconhecia a autenticidade e o impacto que cada um tinha.
— Bom, eu ainda preciso pedir uns docinhos para viagem. — Apoia-se na mesa para se levantar. — Poderia me esperar ao lado de fora?
— Tudo bem. — Diz, soando um ligeiro mais desapontada do que gostaria.

Soprando o vapor em suas próprias mãos, Anne já havia se cansado de admirar a paisagem ao seu redor e não demonstrava tanto interesse em observar algum civil ou outro que transitava pela rua esbranquiçada de Seattle.
Já havia considerado muitos minutos para apenas um pedido de caneles, conforme Pether havia dito. Pensou em chorar mais uma vez, mas conteve seu semblante esmorecido e inquieto.
Logo, o esperado e agudo som da campainha indica a saída de alguém do local.
— Espero não ter demorado. — Com duas sacolas embaladas para presente em mãos, Pether sorri à menina assim que a vê.
— Ah, de forma alguma. — Sua simpatia prevaleceu sobre o seu teco genuíno de impaciência que havia florescido nesse meio tempo.
— Aqui. Este é pra você. — Estica uma das sacolas até a mão de Anne.
Um bocado confusa, aceita o presente com um gesto sorridente e levemente curioso para desembrulhá-lo de uma vez. Ao se desfazer do papel avermelhado bordado com flocos de neve, se depara com uma pequena caixinha dourada e reluzente.
Não demorou nada para localizar uma minúscula manivela em sua extremidade. A acionou de imediato.
O cubo se abre lentamente na palma de sua mão e revela uma garotinha brincando com alguma espécie de Pokémon que, infelizmente, desconhecia.
Além dos gestos mecânicos típicos de uma caixinha de música, a melodia orquestrada no vibrafone a tranquilizou de uma forma que deixou escorrer mais uma lágrima de contento ao contemplar o presente.
Por fim, os movimentos se encerram e a menininha trabalhada no ouro, ao lado de seu Pokémon, se entrelaçam em um abraço. A singela música concede espaço ao silêncio novamente.
Assim, a garota direciona o olhar novamente para Pether. Era raro presenciá-lo com alguma face sorridente e, ao mesmo tempo, redimida com um resquício de frustração. Por conseguinte, também nota os braços abertos do homem a convidando para um abraço.
Sem mais, se entrelaçam. Como um dejá vù, não tinha muito tempo que Anne recebia seu ídolo em seus braços — apesar de que agora era diferente, afinal, ela foi recebida. Ainda assim, podia encarar o aperto longo e longe de qualquer pressa do senhor Morgenstern como um pedido de desculpas ou até mesmo como uma benevolência extremamente rara de ser vista em torno de sua personalidade.
— Vai ficar tudo bem, Anne. — Intensifica o abraço esfregando suas mãos nas costas da menina. — Vai ficar tudo bem.
Se tivesse algum compromisso, poderia esperar. Afinal, nunca se viu na obrigação de apoiar qualquer fã que batesse na sua porta a troco de um autógrafo ou uma visita sem hora marcada.
Mas com essa garota que salvara em uma ocasião anterior e fora recebido com uma festa planejada pela própria, era diferente.
Da mesma forma como fora acolhido por sua mãe adotiva, transcreveu seus mais puros sentimentos para acalentar Anne em seu abraço.
— Mas e se algo der errado na minha jornada— É interrompida.
— Você pode vir me visitar. As portas do estúdio serão como as portas de sua casa.
Era isso que ela precisava afinal. Que alguém depositasse sua confiança e, especialmente, seu amor nela.

ATO 5: MAS GUARDAREI
Quem quer que fosse, alcançar Kai seria uma missão quase impossível neste momento. Numa velocidade descomunal, não hesitava em realizar qualquer manobra de curva e, caso necessitasse, estaria preparado para frear sua bicicleta no mesmo instante.
Acompanhado de Poliwhirl grudado em seus ombros e com olhos ligeiramente arregalados e assustados com o vento impactante em sua face, o garoto não media esforços para realçar o gosto por sentir seus cabelos e dreads esvoaçantes com a brisa gostosa da manhã da Ilha Melemele.
— Nesse ritmo, vamos chegar na estação em menos de — Ainda que seu foco tivesse que ser triplicado no manejo do guidão, conseguiu uma brecha para encarar seu relógio de pulso. — 5 minutos!
Ainda que sua precisão e seu exagero em rapidez demandassem de um horário fixo para o próximo trem partir, o moreno não deixava de apreciar — pela última vez — a cidade de Hau’oli e, na medida do possível, cumprimentar um ou outro conhecido que avistava na rua.
Aproveitou a longa ciclovia disposta e poupou o caminho pelas ruas — longe de serem movimentadas, por sinal. Além de desfrutar do frescor das águas do mar, poderia admirar, sem cansar, a visão da praia pela qual passou memoráveis e incontáveis momentos de sua infância até os dias atuais.
— É, duvido que Kalos terá alguma praia tão bonita quanto essa. — Comenta consigo mesmo, em um ligeiro tom de reprovação ao continente citado.
Ao passar num ritmo desenfreado ao lado de alguns canteiros floridos, desencadeou uma horda de Cutiefly e Ribombee a realçarem voo. Nunca cansaria de fazer isso, cogitou.
As dezenas de Pokémon abelhas completam os raios solares entre nuvens, trazendo um aspecto digno de ser eternizado na mente de qualquer turista que, por sinal, exclamavam aos montes na presença do evento.
Não muito longe dali, uma pequena manada de Rockruff corria atrás da bicicleta do menino com muito anseio, tanto por seus semblantes sorridentes quanto por suas línguas de fora — provavelmente secas de tanto arfarem enquanto trotavam.
— Ei, Poli! — Kai aponta ao céu. — Olha lá! É nosso dia de sorte, não acha?
Ambos avistam uma atípica e majestosa ave azulada circulando pelos céus, além de disparar um poderoso piado ao planar suas asas sobre o mar. Se tratava de um Braviary.
O contemplo pela natureza e seus Pokémon durou pouco tempo, visto que se aproximavam do estacionamento de bicicletas — dali em diante, poucos passos os levariam até a estação ferroviária.
De qualquer forma, o pequeno Mansur suspirou profundamente e encarou a imensidão da cidade em contraste com o verde das ilhas e do vulcão inativo e consumido pela mãe-natureza.
Sentiria saudades, de fato.
— Guarda bem essa visão, Poli. — Disfere o olhar para seu companheiro. — A viagem vai ser longa!

— Vem logo, seu molenga!
Sem dispensar a autoridade e o lado brincalhão na fala, Ayane avança com mais liberdade ao setor de desembarque do que o seu companheiro — afinal, todas as bagagens ficaram por conta do porte nada halterofilista do pobre rapaz.
— Ei- aff, espera aí! — Na esperança de reunir o mais puro fôlego, Yuuta ainda acaba falhando com a voz nitidamente abatida pelo cansaço. — Droga, o que diabos você trouxe nessas malas, hein?!
Não obteve resposta — e esperava por isso. Seu foco direcionou-se brevemente à feição radiante da menina ao observar a construção da nova estação a qual desembarcaram. Habituados à cidade de Goldenrod, um choque diferente os abateu perante a arquitetura rústica, porém perfeitamente conservada, do ambiente.
— Olha! — A menina aponta ansiosamente a um painel dedicado com alguns cartões postais. — Que castelo lindo!
— Hm? — Assim que finalmente se aproxima, o prazer do menino em largar todas aquelas tralhas no chão é incomensurável. Feito isso, toma nota dos cartazes colados no móvel de madeira. — Castelo Shabboneau? É para onde estamos indo, ora!
— A Anne mora nesse castelo?! — Seu semblante incrédulo rendeu breves gargalhadas gostosas para Yuuta. — Por que você nunca me disse isso antes?!
— Eu devo ter dito no caminho, você não prestou atenção pois estava ocupada demais admirando os campos de Gogoat.
— Ah, é verdade, né? — Com um sorriso travesso e levemente culpado, Ayane se redime. Logo, sua atenção se volta ao emaranhado de imagens. — Olha aqui! Parece que chegamos na melhor hora possível!
— “Festival da Colheita de Camphrier”, interessante! — O menino continua a leitura se atentando aos detalhes. — “Magistrado em prol da fartura e prosperidade na agricultura e sediado na rua principal, de frente com o Castelo Shabboneau”.
— “Concurso de bolos natalinos e uma variedade de lembrancinhas e presentes”! A gente tem que conferir isso, Yuuta! — O olhar da menina transborda de emoção ao garoto que, obviamente, assente positivamente com a oportunidade.
— Antes de mais nada, a Anne deve estar nos esperando e — Olha aos seus arredores. — A saída é por ali, vamos!
Assim que o menino obtém forças necessárias para reerguer a pilha de malas, é surpreendido por um breve cutucar em seu ombro.
— Hã, com licença? — O sorriso receptivo da garota interrompe sua futura caminhada. — Poderia me tirar uma dúvida?
Yuuta pensou em direcionar seu olhar irônico para o montante de bagagens e, em seguida, para a figura que o obstruiu, mas não o fez. Suspirou discretamente e largou tudo mais uma vez, no final das contas.
— Me desculpe por isso. — A menina se curva brevemente. — É que eu não sou daqui e estou um bocado perdida!
No singelo ato de redenção, Yuuta pode reparar — mesmo que involuntariamente — nos longos e brilhantes cabelos azul-petróleos da personalidade, além de seu cativante perfume esvoaçado ao movê-los delicadamente ao se recompor.
— A-Ahn, eu também acabei de chegar, mas — Pigarreia uma ou duas vezes, a fim de retomar a integridade em sua pose. — Posso tentar te ajudar, eu acho.
Assim sendo, a garota esboça de um gratificante sorriso e retira um pequeno mapa de sua bolsa.
— Qual saída eu devo pegar para chegar o mais rápido possível em Lumiose?
Apesar do mapa demandar de um punhado de informações interligadas e confusas, Yuuta não demorou muito para apontar a resposta com o dedo.
— Eu confirmaria na recepção da estação, porém tenho quase certeza de que é por aqui.
— Ah, muito obrigada! — Guarda o mapa com ligeira pressa e aperta suas mãos contra a do rapaz por diversos segundos.
— Não por isso. — Ainda encabulado com a súbita presença, Yuuta sorri com um pingo de desajeito. — Espero que consiga chegar logo em Lumiose.
— Nem me fale! — Suspira. — Depois de lá, ainda tenho que chegar no aeroporto e partir direto para Kanto!
— Acho que te entendo. A minha amiga e eu acabamos de chegar de Johto. — Aponta para Ayane, quase sumida de sua vista, inquieta perante uma vitrine com artigos natalinos aos turistas e visitantes locais.
— Nossa! — A feição culposa novamente recai sobre a personalidade. — Eu não fazia ideia de que você estava em um encontro com ela! Mil desculpas por te interromper nesse momento tão importante!
— Quê? A-Ah, não! Imagina! — Levemente ruborizado, Yuuta se defende alegando as mãos. — Acho que- acho que não somos bem um casal e estamos aqui com outro propósito, na verdade.
— Bem, o mínimo que eu posso fazer é te ajudar a empilhar isso de novo. — A menina sugere as malas caídas no chão.
Depois de uma mãozinha amiga, o menino se encontra pronto para sua árdua e pesada caminhada pela terceira vez.
— Obrigado. De verdade. — Yuuta sorri.
— Eu que agradeço. Por tudo! — Acena com graça e simpatia. — Aliás, que cabeça a minha! Nem perguntei como se chama, a louca!
— Ah, — Ri de forma proveitosa. — Pode me chamar de Yuuta.
— É um prazer, Yuuta! — Sorri. — Dawn.
Por mais instantes do que deveria, o rapaz acabou se perdendo no gracioso sorriso e no delicado rosto da mais nova conhecida.
— Bem, acho que é hora de nos despedirmos, não? — Salvo por Dawn que o resgata de seu transe sem precedentes.
— S-Sim, claro! — Sacode a cabeça breve e rapidamente. — Até a próxima!
— Até!
Por conseguinte, ambos seguem seus respectivos rumos. Por alguma razão, a presença da nomeada por Dawn trouxe algum sentimento nostálgico para Yuuta, de forma que aparentasse que já tivesse a visto em algum outro lugar, em uma oportunidade totalmente diferente.

O trajeto até o Castelo Shabboneau não era um dos mais longos para aqueles que não demandavam do uso exagerado de força para cada passo. Mesmo assim, Yuuta não aparentava demonstrar cansaço com a atividade enjoativa — para ser sincero, estava tão distante quanto poderia sequer lembrar das malas em suas mãos.
Elementar que o comportamento do menino nitidamente alterado e longe de ser o mesmo que tanto desfrutava e afeiçoava incomodava Ayane à medida que caminhavam no silêncio — às vezes, algum comentário solto sem muita delonga era feito sobre isso ou aquilo e nada mais.
— Eh, parece que o papo com aquela garota foi muito interessante mesmo, hein?
Ainda que abatido por seus pensamentos, Yuuta pode sentir a clara alfinetada com um toque de repulsa na voz da menina. Por mais que tentasse soar irônica e divertida, sabia muito bem que a entonação não fora bem executada para esse caminho.
Contudo, o que lhe coube responder, além de dirigir seu olhar confuso à garota, foi apenas uma palavra.
— Hein?
— Você e aquela estranha lá na estação. Parece até que eram amigos de longa data. — Sorri de canto.
— Ah, a Dawn. — Suspira, rindo um bocado. Neste meio tempo, Ayane arregala os olhos por comprovar que sua teoria se confirmara. — Na verdade, nos conhecemos ali mesmo.
— Aham. — Lenta e arrastadamente, o tom de provocação soou como uma ligeira ofensa para o menino.
— Ela estava tão perdida quanto nós e eu só ofereci uma ajudinha!
— Eu não quero saber os detalhes do que aconteceu, idiota!
— Ótimo!
Após bufar com seu repentino estresse, Ayane deixou evidente o fim do diálogo durante a caminhada. Assim, apreciavam o ar pitoresco e cativante da pequena cidade de Camphrier sem qualquer troca de elogios ou notações a respeito do que visualizavam.
Não tardaram muito para atravessarem o enorme chafariz central que, além de ser considerado um marco histórico para a população, era um ótimo ponto de referência. Caso desejassem a rota mais curta para, enfim, chegarem ao seus destinos, seguiriam à Oeste.
— Ela era bonita?
Contrariando seu senso de teimosia e silêncio, a voz ligeiramente insegura e curiosa da menina percorreu pelos ouvidos de Yuuta.
Claro que não ousaria em demandar de muito tempo para a resposta, dado o clima pesado que recebia a cada sutil encarada de sua amiga.
— Sei lá, você achou? — Indaga de volta, soando mais descontraído do pretendido.
Como se aguardasse a real resposta, Ayane o pressionou da melhor forma possível — com o silêncio. Com êxito, pode provar da conturbação do rapaz ao ter sido levado ao vácuo.
— Ah, tá bom! Ela era muito simpática. Tinha um rosto muito bonito também. Mas o que isso tem demais?
— Nada, ué! O que tem demais em eu querer saber isso?
— Por que você está respondendo as minhas perguntas com outras perguntas?
— Olha só quem fala!
— Foi você quem começou, sua besta!/ seu tonto! — Elevam a voz em uníssono.
Ainda que a visão do enorme castelo que imergia do horizonte os fizesse calar, o senso de orgulho provavelmente foi o determinante para apenas os sons da natureza perambularem pela cena.
Pesarosos instantes consumiram a trilha de paralelepípedos pela qual trafegavam sem muita pressa — a julgar em condições mais promissoras, estariam correndo de ansiedade a fim de chegar logo ao Castelo Shabboneau.
— Yuuta, eu — A súplica de Ayane soa baixinho e com um ligeiro tom de culpa. — O que aquele beijo significou para você?
Antes de se pronunciar, observa uma grande familiaridade nos cabelos ruivos ganhando destaque no fim da rua que transitavam.
— Anne?
— Anne? — Rebate, totalmente incrédula.
— Não sobre isso! Lá! — Aponta à frente.
A referida não demorou nada para avistá-los — considerando que a distância era ínfima — o que empobreceu qualquer oportunidade de Ayane conquistar sua tão esperada resposta.
Por um certo lado, poderia considerar esse desvio como algo que não correspondia suas expectativas. No final das contas, deixou por assim estar.
— Hey! Ayane! Yuuta! — Acenando alegremente a ambos, a menina ruiva se aproxima do casal. — Fico feliz que tenham vindo!
Inicialmente, Anne contestaria — em um semblante bem-humorado — a quantidade absurda de bagagens que a feição sôfrega de Yuuta se esforçava para desenhar um sorriso a ela, apesar do contraste embranquecido de Ayane ao seu lado.
— Tudo bem com vocês? Como foi a viagem? — Em um cumprimento animado, os cabelos alaranjados se casam com os castanho-escuros em um abraço.
— O continente de Kalos realmente é muito bonito, Anne. — Correspondendo o gesto, Ayane esboça um quase invisível sorriso. — Você tinha razão.
— Ah, tá tudo bem, sim. — Yuuta ri de leve. — Correu tudo conforme o planejado, então, não poderia ser melhor!
— Ah, que bom! — Assim que se desvencilha da menina, Anne cogitou a ideia de repetir o ato ao companheiro ao lado. — Ér, acho que você tá um bocado ocupado com isso, né?
— Não seja por isso! — Na gentil esperança de ser recebido com a mesma generosidade que Ayane, o menino dispensa sua carga ao chão.
Ainda que os olhos de Anne hesitaram um bocado em avançar com a cordialidade, não teria por que agir de maneira tão ríspida ou estranha diante de seu amigo. Assim sendo, o abraçou com uma dose de ternura.
De qualquer maneira, ainda era audacioso e incomum demais abraçá-lo em tais circunstâncias. Devido a isso, o gesto perdurou menos do que o esperado.
— Bem, eu tenho que dar um pulinho ali na frente para resolver um assunto. — Continua Anne. — Vocês serão muito bem recebidos na minha casa, não se preocupem quanto a isso, tudo bem?
— Mas — O gosto da dúvida desabou sobre o tom de Yuuta. — Aonde você vai?
— É rapidinho! Eu não vou demorar! — Sorri, saindo às pressas do local.

A julgar pelas coordenadas e pelo aparente cansaço, Neil já havia depositado uma perdida quantidade de passos até o seu progresso atual.
Para facilitar a sua rota e não se confundir ao se deparar com alguma esquina, guiou-se por alguns pontos-referência circulados em seu mapa arquitetado propriamente para a sua saída da cidade de Lumiose.
— Certo. Acabamos de passar pelo Café Rouleau tem aproximadamente dezessete minutos. Além disso, quase viramos na esquina errada após o Lumiose Press e estamos a — Se interrompeu.
Ajeitou o mapa de maneira desalinhada com seu campo de visão e, com auxílio de uma das mãos, conseguiu assinalar um círculo na última esquina da Estival Avenue — que, aliás, não se recordava da extensão da avenida propriamente dita.
— A três ou quatro quadras da guarita sudoeste da cidade.
Fletchinder murmurou algo em seu ombro, como se instigasse a curiosidade a confirmar se os planos de seu companheiro estavam corretos.
— Não se preocupe, Fleth. — O sorriso do garoto tranquiliza as asas inquietantes do pássaro. — Tudo foi milimetricamente calculado antes de sairmos de casa.
O que, soando como uma breve recordação, soou mais fácil do que planejava. O circuito de segurança que abrangia a saída dos fundos havia sido desligado para manutenção desde o dia anterior e ainda não estava operando em suas condições normais.
Além disso, o pequeno portão usado normalmente por serviços de terceiros contava apenas com uma tranca simples. Nunca pensou que mencionaria isso, mas uma das coisas úteis que aprendeu com muita facilidade ao conhecer a dupla de esquisitos do S. T. A. R. S. foi a técnica inicial de arrombamento de trancas e fechaduras.
— Tenho que agradecer aquela maluca por isso em outra oportunidade. — Diz ao recordar-se do clipe no bolso de seu jaleco. Em seguida, exibe um meio sorriso a si mesmo.
O movimento das ruas da cidade-luz era o costumeiro para o jovem Campanella. Não reconhecia as pessoas transitantes, tanto na ida quanto na volta, uma vez que não encarava seus semblantes por mais tempo do que o necessário para seu senso tímido ressoar com força.
Ainda assim, tinha tempo e dedicação para se afeiçoar à decoração natalina de muitas vitrines de boutiques, cafeterias, restaurantes e outros prédios empresariais que tinha conhecimento apenas de nome — uma vez que seu pai os mencionava inconvenientemente em algum almoço de família ou algo do gênero.
De qualquer maneira, afastou os pensamentos envolvendo seus familiares. Contentou-se com os enfeites trabalhados no forte vermelho, verde e no branco, ainda mais o meio-fio da calçada ainda abarrotado de neve do dia anterior.
— Tirar a neve da calçada é algo que deveríamos experimentar um dia, Fleth. — Comenta sem muita ênfase, um bocado perdido no trilho de neve que se mesclava à rua coberta do mesmo manto esbranquiçado.
O clima e a estação invernal apenas contribuíram para que sua feição se agradasse ao ar gélido que inspirava e ao céu acinzentado que o encobria, ameaçando de despejar pequeninos cristais de gelo a qualquer momento.
Mais alguns minutos e deram presença à esquina da Estival Avenue. O campo de visão se alargou para a South Boulevard, além de visualizar muito bem o Shutterbug Café — o qual, na sua humilde opinião, oferecia o melhor expresso da cidade.
Como estava, na prática e de acordo com os seus cálculos, doze minutos adiantado, poderia muito bem desfrutar de um último gole de café de seu local preferido — bem como levar um consigo para viagem e compartilhá-lo com seu Fletchinder.
Adentrou ao ambiente aquecido e o reconfortante toque da campainha o trouxe lembranças agradáveis. A atendente, uma senhora com seus aproximados cinquenta anos e com um semblante muito receptivo, o encarou com um sorriso simpático.
— Ah, Neil! — Exclama com gosto. — O que vai ser hoje? O mesmo de sempre com o toque da casa?
— A senhora não poderia estar mais correta. — Sorri, desprendendo-se de sua timidez.
A conhecia há tantos anos que não conseguia abater seu senso de intimidade com a generosidade cativante da mulher.
— Um minuto, sim?
— Ah! Poderia preparar um para a viagem? É para ele. — Aponta ao Pokémon em seu ombro.
— Sem problemas. Creio que devo diminuir a quantidade de açúcar para ele, certo?
Neil acena em positivo e aguarda sentado em uma das banquetas dispostas ao balcão trabalhado na madeira nitidamente envernizada. Admirava um bocado o forte tom de vermelho-canela reluzente que nunca perdera o encanto diante de tanto tempo de funcionamento do local.
Sobre o móvel, nota uma pequena escultura de um Papai Noel desejando boas festas. Nesse relapso temporal, pode se recordar de seu aniversário nas proximidades do calendário.
— Aqui está! — Logo, a atendente deposita dois copos muito bem embalados em cima do balcão.
Apenas pelo aroma adocicado e pela qualidade do serviço, Neil não poderia contestar cada centavo válido para o café.
Entretanto, a sutil curiosidade da mulher instigou em observá-lo com sua mochila nas costas.
— De viagem, Campanella? — Pergunta, um bocado estranhada com a situação.
— É. — Sua voz ostentou de um lado vago que reconhecia muito bem. O mesmo não passou distante para a senhora.
No intervalo de tempo que seu olhar se distraiu dos copos de café, pode observar um cartaz informando o desaparecimento de uma garota nomeada como Dominic Meyers Bettencourt. Há quase um ano atrás, a sua foto estava do lado dela e, futuramente, não duvidaria que voltaria a preencher quadros e painéis informativos mais uma vez.
— É uma longa história, senhora Beaufort. — Suspira, concentrando seu olhar desconcertado à referida.
Apesar das circunstâncias, Neil gostaria de reafirmar sua confiança a todo instante, mas sabia que, no fundo, seu plano o abalaria de forma que transpassasse isso na impaciência e no pavor de seus olhos celestes.
Dado o histórico do pequeno garoto e o tanto que o conhecia e a sua família, a senhora Beaufort desenhou um gracioso sorriso em seu rosto.
— Não tenha medo, meu bem. — Deposita sua mão levemente enrugada sobre os dedos inquietos de Neil. — Se você tem o anseio de realizar algo grandioso, não deixe que ninguém o limite por isso.
Intrigado e confuso, o garoto foca seu olhar perplexo diante da simplicidade da magnânima senhora.
— Como você — É interrompido quando sua mão é apertada com mais força.
— Seu olhar. — Ri de lábios fechados. — É o mesmo olhar quando meu filho decidiu sair de casa e deixar nossa cidade em busca de aperfeiçoar seu sonho.
Pelo que podia recordar, o referido pela mulher era um garoto loiro que transferiu a posse do cargo de líder de ginásio para o seu pai havia alguns meses, momento em que resolveu viajar para o continente de Kanto.
— Não deixe que o medo e a incerteza te guiem nesse caminho, Neil.
— Pensarei nisso com carinho, senhora Beaufort. — Mais apaziguado, o garoto ajeita seus óculos em seu rosto e expõe uma face ligeiramente confiante.
— Com carinho e lógica, se bem sei. — O repreende com um breve riso. — Se me perguntarem sobre você, direi que nunca esteve melhor.
— Obrigado. — Sorri, agradecido.
Deixou o estabelecimento degustando de sua preciosa bebida e guardou a de Fletchinder para uma eventual ocasião.
Assim que perde o rapaz de sua visão, o semblante contente da mulher se volta ao porta-retratos um pouco mais oculto da clientela. Diante do sorriso eufórico de uma garotinha loira, acompanhada da feição tímida e nada fotogênica de seu irmão mais velho, deixou escorrer uma curta lágrima de saudade.
De volta ao Campanella, finalmente seus óculos embaçados pelo tempo úmido avistaram a guarita pela qual planejou.
Antes de atravessá-la, resolveu olhar para trás. Além de relembrar todo o seu percurso até o último passo, pode enquadrar a última visão que teria de sua cidade natal.
Por mais reluzente que a Prism Tower se apresentasse diante de seus olhos levemente marejados, não deixou de frisar a frieza e a escuridão que abraçavam a cidade em tantos aspectos que gostaria muito de esquecer.
— Até mais, cidade de Lumiose. — Acena discretamente em direção da torre. — Pai. Mãe.

ATO 6: PARA SEMPRE
A travessia pela rota 5 não demandaria de muito esforço para Anne, uma vez que já estava bem acostumada com a natureza do local e, eventualmente, encontrava algum Pokémon selvagem que batizara com algum apelido dada a intimidade que nutria com ele.
Entretanto, devido à estação do ano nada favorável para muitas espécies típicas dali, o caminho no qual enfrentava fora entregue aos ventos incomodantes e travessos que se infiltravam em qualquer brecha nas vestimentas da menina.
— Blrr, eu devia ter trazido um par de luvas! — Bafora nas próprias mãos pálidas no intuito de aquecê-las momentaneamente.
Ainda bem que tinha convencido sua Misdreavus a permanecer quentinha no conforto de seu lar — com muitas objeções da parte dela, é claro — e prometeu a todo custo que não demoraria muito.
Vira e mexe, os pensamentos da ruiva se concentravam na visão recente do casal, Yuuta e Ayane. Por algum momento, especulou se, de fato, estavam juntos ou o que vira há tempos atrás era só um mal entendido.
Dificilmente seria uma ilusão ou algo errado, afinal.
— Wouf! Wouf! — Um típico latido preenche a atenção olfativa da menina. Pode se dizer que seu semblante melhorou consideravelmente após reconhecê-lo.
Às pressas, um Pokémon tão branco quanto a neve que comportava em seu corpo e em seu focinho se aproxima de Anne, nitidamente empolgado.
— Trim! Que bom te ver por aqui! — Antes mesmo que se ajoelhasse, é recebida pelo abraço pulsante do cachorro.
— Wouf! — A língua gelada do Pokémon denominado como Furfrou, mas apelidado de Trim por Anne, estremece as bochechas de Anne assim que estabelece contato com seu rosto.
— Nem a neve consegue te parar, né? — Ri com gosto.
Depois de alguns instantes, despediu-se do Pokémon canino e seguiu seu rumo até o fim da rota. Como era de se esperar, a pista de skate não abrigava uma alma para contar história.
De longe, pode reconhecer o incontestável jaleco branco da personalidade que vinha de encontro consigo. Não deixou de esbanjar um curto sorriso ao rever o amigo. Além disso, por vê-lo presente, sabia que havia tomado uma decisão.
— Neil! — Próximos o suficiente, Anne corre para agilizar o reencontro.
— Parece que estamos dois minutos e — Observa seu relógio. — Cinquenta e três segundos adiantados, não é mesmo?
— É muito bom te rever também, seu maluco! — O abraça com vontade.
Diferente do calor proporcionado pelo gesto, talvez era deste outro tipo de aquecimento que Neil precisava, nem que fosse por reles segundos. O carinho de uma verdadeira amizade, para ele, era algo indispensável e extremamente raro.
— E os outros? — Assim que desfaz o abraço, Campanella pergunta.
— O Yuuta e a Ayane já chegaram! Só falta o Kai! — Sorri.
— Bom, já sabemos que o nome do cara é Kai, né?
— Com certeza, sabemos. — E ambos riem.

ATO 6: VOCÊS
Conforme mencionado por Anne e Neil, o atraso de Kai foi denunciado por ter sido o último a chegar — quase no final da tarde. De qualquer forma, a recepção coloquial e gentil da senhora Margareth para as boas-vindas ao Castelo Shabboneau foi pontual e invicta para todos.
As feições mais abobadas e incrédulas com o luxo e a grandeza da residência da ruiva partiram de Yuuta e de Kai, enquanto o vislumbre pela decoração e acabamento ficou por conta de Ayane. Ainda que comovido com a beleza da arquitetura gótico-medieval da construção, Neil não transpassou tanta emoção como os demais.
Claro que a própria senhorita Shabboneau se disporá a apresentar todas as instalações do castelo, desde o salão de batalhas até os cômodos mais irrelevantes — talvez dispensaria a apresentação das dezenas de banheiros, afinal. Isso tudo depois de certificar que os convidados estivessem bem acomodados, após um revitalizador banho e uma boa refeição.
— Caramba, acho que nunca comi tanto na minha vida! — Boceja Yuuta, nitidamente satisfeito ao se acomodar em uma poltrona.
— Deu para perceber. — Kai o observa, um ligeiro espantado por seu aspecto indiferente com relação à comida. — Me admira ainda ter sobrado espaço para a sobremesa.
— Minha mãe sempre comentou que eu tenho um estômago de dragão, mesmo! — Complementa o autor da comilança, com um sorriso brevemente envergonhado.
— Pelo visto ela não comentou muito a respeito de educação na mesa, não é mesmo? — Indaga Neil, com uma pitada de ironia.
O comentário rendeu boas risadas para o garoto de óculos e o moreno do outro lado. Até mesmo Anne esbanjou uma breve face risonha com o fato.
— Não faz mal, Yuuta. — A menina o reconforta de seu notável embaraço perante a cena. — A senhora Margareth se sentiria ofendida caso não apreciassem o jantar que ela planejou com tanta dedicação.
— Tão vendo, otários? — Yuuta rebate com a língua à mostra aos outros meninos.
Acomodados na sala de estar do castelo, — nada modesta, por sinal — o calor que a grandiosa lareira os proporcionava fazia até com que se esquecessem das condições climáticas ao lado de fora e, eventualmente, um ou outro cachecol ou casaco se tornava desnecessário.
A pedido de Neil, Anne conseguiu providenciar um punhado de sementes de girassol para acompanhar o café de seu Fletchinder. Enquanto isso, o Poliwhirl de Kai encarava a fogueira vibrante à sua frente com atenção e desconfiança — às vezes, arriscava de mover sua mão até as chamas, mas retornava no mesmo instante ao sentir o forte ardume.
No aconchego do carpete bordô, a Chikorita de Ayane desfrutava da troca de calor ao lado das costas ligeiramente escamosas de Croconaw — o qual dormia com direito a quase roncar perante os demais.
— Ele continua te mordendo como de costume? — Indaga Kai, ao observar o Pokémon profundamente em seu descanso.
— Acho que estamos nos entendendo bem melhor agora. — O dono de Croconaw sorri forçado ao relembrar-se das altas peripécias e confusões envolvendo seu, anteriormente chamado de, Peste.
— Já estava na hora de mudar mesmo. — Ainda que os demais levaram o tom de Ayane na comédia, Yuuta pode sentir uma alfinetada merecida com um ligeiro rancor em sua voz.
— A depender do dono, é possível que não saiba nem o que é uma batalha. — Kai dá de ombros, rindo.
— Por que você não diz isso na minha cara quando aceitar o meu desafio para uma batalha contra o seu Poliwhirl? — Yuuta o provoca com um semblante desafiador.
— Meu código de conduta não me permite batalhar com Yuutas. Sinto muito.
Mesmo que dito com extrema seriedade, não tardou nada para o moreno cair na gargalhada — motivando, gradativamente, os demais a embalarem no clima bem-humorado também.
— Vocês podem usar o salão de batalhas que comentei antes. — Introduz Anne, apontando à direção respectiva do cômodo. — Não acho legal batalharem no campo lá fora.
— Você costuma batalhar nesses salões? — Pergunta Neil, ainda que não fosse sua especialidade. Não se recordava de assimilar sua amiga com batalhas Pokémon na mesma frase.
— Ah, não. — Sorri de leve. — É aberto aos visitantes e moradores da cidade para competirem entre si. De vez em quando, alguma competição oficial acontece aqui e eu tenho que estar presente, né?
— Espero que um dia a gente possa se enfrentar também, nesse caso. — Yuuta concede um sinal positivo com o polegar à moça.
— Bom, eu acho que — Kai se levanta, espreguiçando-se com gosto em seguida. — O Poliwhirl e eu temos uma surra para dar em um certo alguém! Certo, Yuuta?
— Se você está dizendo — O citado o encara com um sorriso promissor. — Espero que a sua vontade de correr até o Centro Pokémon depois dessa seja muito grande!
— É por ali. Sigam o corredor até a sexta porta à direita, é impossível errar. — Após um inaudível risinho, Anne sugere o caminho.
— Cuidado com o Yuuta, só para constar. — Neil adverte. — Há boatos de que ele trapaceou a evolução de seu Pokémon para ter vantagem sobre nós quando iniciarmos nossa jornada.
— Pode deixar! — Kai acena de volta. — Eu jamais depositaria minha total confiança em alguém que consegue nota vermelha na matéria de artes!
— Ai, ai. — Yuuta revira os olhos, até direcioná-los para o silêncio tenebroso de sua companheira. — Você vai nos assistir, Ayane?
— Hã, não. — Concede um meio sorriso. — Desculpa, eu tô um pouco cansada. Inclusive — Se vira a Anne. — Poderia me dizer de novo o caminho até o meu quarto, por favor?
— Ah, mas- mas é claro. — Apesar de estranhá-la a princípio, a ruiva concorda correspondendo o gesto. — Boa batalha, meninos!
Sendo assim, Yuuta trata de acordar seu Pokémon. Num susto, Croconaw salta em pose de alerta. Simultaneamente, Kai sofre um bocado para se livrar do transe de seu Poliwhirl perante o fogo.
— Basta subir as escadas à esquerda, é o primeiro quarto do primeiro corredor. — Explica Anne.
Assim que Ayane agradece e sobe os degraus, Misdreavus desce com euforia pelo corrimão até saltar para os braços de sua amiga.
— Onde você se meteu, hein? — A afaga com ar divertido. — Espero que não esteve lá fora!
Percebendo a afinidade da menina com seu Pokémon, Neil sorri involuntariamente. Em seguida, se levanta. Provavelmente estava curioso com relação ao resultado da futura batalha de seus amigos.
— Ahn, Neil? — O chamado de Anne o interrompe. — Pode vir comigo um pouquinho? Queria te mostrar uma coisa.
— Claro. Sem problemas. — Responde, simples.
Assim, o garoto deixa a presença de seu Pokémon pássaro que bicava o pratinho de sementes sem pressa. O caminho pelo qual seguiriam ainda era imprevisível, dado o número de cômodos, corredores e lances de escadas que aquele lugar disponibilizava.
A arquitetura do castelo, bem como a construção, o relembravam automaticamente da outra princesa, ainda desaparecida, Dominic. O fato de que poderia estar na mesmas condições — ou piores — nas quais conseguiram se livrar do próspero sequestro e, somado a isso, acompanhada de outras vítimas que ninguém sabe o paradeiro até agora era revoltante.
— Os pais da Dominic devem passar muito por aqui. Em busca de alguma informação ou algo assim. — Comenta o rapaz, pesarosamente preocupado.
— Quase todos os dias. — A resposta soa no mesmo tom, ainda que mais frustrada. — Infelizmente, sempre temos que dizer a mesma coisa: nenhuma novidade que possa ser útil para as investigações.
— Espero que esteja tudo bem.
— Acredito que, amanhã, durante o Festival da Boa Colheita, faremos uma oração em prol do bem da Dominic e das demais vítimas.
O restante do percurso seguiu em silêncio até Anne apresentar o destino — um tanto intrigante para Neil. Ao abrir a porta e acender o luxuoso lustre, revela uma sala dedicada à arte e entretenimento musical.
Era para ser, na teoria. Na realidade, muitos quadros encontravam-se enfileirados em gavetas e cantos das paredes com algo os cobrindo quase completamente. De longe, Campanella podia reconhecer a forma sob a toalha — a qual guardava um piano.
Antes de adentrarem por completo, Anne concedeu um fraco sorriso ao amigo e o conduziu até o piano. Retirou a toalha — com uma quantidade surpreendentemente irrisória de poeira — e o brilho do instrumento preencheu o reflexo das lentes do menino.
— Eu sei que o seu aniversário é amanhã, mas — Anne continua. — Gostaria de te dar o meu presente e, bem, como sei que você gosta muito de piano.
— É. Eu gosto muito. — Imediatamente, trouxe as memórias de seu Steinway & Sons abandonado em seu quarto. Sabe-se deus o que seria dele a partir de agora.
— Espero que goste dele. É todo seu por hoje. — Ri de leve, alisando a tampa do instrumento sem muita pretensão e com um olhar ligeiramente desanimado.
Claro que seu lado analítico não deixou de se apegar aos detalhes do longo instrumento de cauda. Se tratava de um Bosendorfer Concert Grand 280VC — claro que não teria que mencionar tamanha nomenclatura para a menina, apenas seria taxado de louco ou um exímio conhecedor de pianos, no melhor dos casos.
Sentou-se na banqueta com cuidado e abriu sua gaveta. Pode sentir a maciez e o peso da madeira trabalhada para a construção do equipamento e, particularmente, admirava muito tais detalhes.
— Meu pai adorava tocar. — De repente, o comentário abatido da ruiva invade a atenção de Neil ao piano. — Quer dizer, todos aqui me dizem isso. Eu não sei.
Pelo peso das palavras, o jovem Campanella pode constatar o motivo de tudo estar tão ofuscado por panos e toalhas, longe de exporem a beleza dos inúmeros quadros que, definitivamente, havia de ter muitos bonitos e icônicos.
— Os quadros eram da minha mãe. — Direciona o olhar a pilha de cavaletes desfeitos em um canto do cômodo, à frente das molduras.
— Caso não se sinta bem com isso, a gente pode se retirar sem problemas e — É interrompido.
— De forma alguma. — Afastando os pensamentos negativos, o conforta com um cordial sorriso. — Eu quero te ouvir tocar.
Para ser sincero, nunca havia tocado para outras pessoas a não ser para seu pai e para sua mãe — uma vez que não era para apreciarem o seu talento e, sim, para julgarem o seu desempenho. Desde então, catalogava as partituras de acordo com o seu gosto e, muitas vezes, preferia aprender mais sobre covers de temas de filmes ou jogos.
— Eu estou um pouquinho enferrujado. — A modéstia e a timidez de Neil fazem soltar um riso reles e bobo. — Bem, vejamos.
Confiante e admirada, Anne se senta em um caixote mais próximo e aguarda pacientemente para qualquer que fosse a música escolhida pelo rapaz de óculos.
Neil posiciona seus dedos sobre as primeiras teclas pretendidas e, com um olhar convicto, finalmente se decidira sobre o que representar através da música.
Seus primeiros dedilhados soaram tranquilos e sincronizados, afinal, havia decorado o início da partitura diante de tantas sessões de treino com tanto louvor e se condenaria à própria morte caso não a executasse com perfeição.
Para ele, a escolha de tal faixa não simbolizava apenas um momento dramático em um jogo. Na realidade, transcendia a ponto de poder mergulhar os seus sentimentos como uma válvula de escape.
Escape este que tanto necessitava. Adiante, tinha perfeita noção de que conseguira embalar o ritmo de sua melodia com maestria. As melhores de suas fugas, tanto emocional quanto real, se reunindo em uma só — após tanto tempo mergulhado na amargura de não poder ser quem realmente queria.
Para Anne, era um bocado engraçado e emocionante vê-lo tão embalado no papel de um verdadeiro pianista, dedilhando, expressando e movendo seu corpo de acordo com as emoções que transmitia a cada nota repassada ao instrumento.
Ouvia as teclas com tanta clareza e o som transparecia com tanta beleza que, eventualmente, Campanella jurou estar reproduzindo uma partitura totalmente diferente da que estava alojada em sua mente.
Então, esse era o sentimento de liberdade que finalmente o abraçou com tamanha vontade. Parecia doloroso, mas reconfortante no final do pesar em cada clique em suas teclas.
O piano, por sua vez, correspondera ao que queria repassar para aquele esquecido e escuro. Que ele tinha um sonho e poderia realizá-lo, afinal.
Gradativamente, recebeu a finalização de sua música com toques mais suaves e vagarosos. Sem perceber, deixou escorrer uma lágrima de um de seus olhos.
Por conseguinte, encerra com as mãos sobre um punhado de teclas. Ao contrário do que imaginava, não estavam pesadas e trêmulas. Ele, em si, aparentava mais calma.
— O nome é “For River”. — Inquire Neil e dirige o olhar para Anne. — Espero que tenha gostado.
— Foi- foi maravilhoso. — Com os olhos cheios de lágrimas, Anne exibe o melhor de seus sorrisos.
— Eu recomendo muito o jogo, aliás!

No final das contas, a batalha tão aguardada de Kai e Neil resultou no pior dos empates possíveis. Um pouco depois de iniciarem, Croconaw agonizou em um mal-estar por ter comido além da conta há momentos atrás. Antes mesmo de cantar vitória, o sedentário Poliwhirl sofreu um ataque de câimbras. Com isso, não havia possibilidade de recomeçar o confronto.
— Posso dizer que, ao menos, meu Poliwhirl estava em clara vantagem antes do seu Croconaw começar a se lamentar de má vontade.
— Qual é? Os berros do seu Poliwhirl podiam ser ouvidos do outro lado do castelo!
— ... Não precisa ofender os sentimentos dele a esse ponto.
Assim que os dois retornam à sala de visitas aos clamores e reclames, Yuuta se depara com algo inusitado.
— Ayane? — Pergunta, confuso. — Você não tinha ido para o seu quarto?
— Hm, parece que tá na minha hora! — Kai se manifesta alegando suas mãos em retirada, sem abandonar seu Pokémon do colo. — Vamos, Poliwhirl!
— Mas- ei! — Sem êxito ao convencê-lo ficar, restam apenas ele e sua companheira no recinto.
— Estava muito solitário lá, então eu voltei.
Ao menos, na companhia de sua Chikorita e de Fletching — que agora também cochilava — era mais reconfortante e o ambiente climatizado pela lareira contribuía para tal.
— Entendi. — Encara os Pokémon por algum tempo, até retomar a atenção para Ayane. — Então, sobre mais cedo.
Apesar de virar o rosto com ligeiro emburro, era tão nítido para ela quanto para Yuuta que gostaria de colocar um desfecho em sua questão.
Com um longo suspiro, um tanto cômico por presenciar a reação inicial da menina, Yuuta se aproxima vagarosamente.
— Você, mais do que ninguém, sabe que significou muito para mim, Ayane. — Proclama, com seriedade e arrependimento de não ter enfatizado tal oração anteriormente. — Assim como eu espero que tenha o mesmo valor para você.
— É claro que teve! — Vira-se imediatamente ao encontro dos olhos do menino.
— Eu fico muito feliz por isso, mas — Se interrompe, remedindo suas palavras mentalmente.
— Mas...? — Arqueia a sobrancelha à mercê de sua ênfase.
— Eu estou um pouco confuso com tudo isso, sabe?
Se tinha algo para dizer, Ayane não contestou. Ao invés disso, apenas abaixou a cabeça e aguardou pelas próximas palavras do menino.
Percebendo que não teria mais escapatória, Yuuta teria que expor o seu caráter e o seu senso de honestidade como sempre fez — e não compreendera por que estava agindo contra ele desta vez — e, de uma vez por todas, acabaria com qualquer dúvida ou sofrimento alheio da melhor forma possível — ou da mais plausível.
— Não quero me precipitar com algo que não tenho certeza, para ser sincero. — Continua, com a boca um ligeiro seca. — Eu quero evitar de machucar pessoas com quem eu me importo muito. Como você.
Além disso, tinha um detalhe crucial que gostaria de mencionar da maneira mais delicada que arranjou em suas conclusões.
— No tempo em que você esteve, bem, você sabe. — Frisou com objetividade e repulsa, afinal, o acontecimento não era nada agradável de trazer à tona. — Eu conheci a Anne e — É interrompido.
— Eu imaginei que ela estaria envolvida. — Diz, indiferente.
— Ca-Calma, não aconteceu nada entre a gente! — Após se defender com as mãos em negativa, repensou se era viável a defesa com tanta vontade como apresentou.
— O jeito que ela te olha é fácil de deduzir que não aconteceu nada, Yuuta. — O encara, com um meio sorriso. — Você nunca deve subestimar o universo feminino.
— A-Ah, então — Coça a nuca. — Eu quero um tempo para colocar meus pensamentos no lugar, entende?
— Entendo.
— E você ficará bem com isso?
— Eu não sei, mas — Suspira. — Que escolha eu tenho?
Subitamente, é recebida por um abraço.
— Mas eu nunca deixarei que nada nem ninguém te faça qualquer mal. — Afaga os cabelos curtos da amiga. — Impedirei até a mim mesmo de fazer algo que possa te fazer chorar!
Como tinha apreço pelo aroma daquele casaco vermelho, ela bem tinha ciência disso. Por ora, nada disse. Apenas se infiltrou de maneira mais confortável no abraço do rapaz e, diferente do esperado, não esboçou nenhuma lágrima de arrependimento ou de tristeza.
— Eu acredito em você, Yuuta. — Sorri consigo mesma.
— Ah, aí estão vocês! — Logo, a voz de Anne invade o recinto.
Com isso, os dois se desvencilham e Ayane trata de limpar suas lágrimas e melhorar o seu semblante agradecido com o acontecimento anterior.
— Ahn, tá tudo bem? — Pergunta, os encarando com dúvida.
— Tá sim! — Yuuta sorri. — O que vocês tinham para nos contar?
— Ah! — A ruiva abraça Neil pelas costas. — Vocês precisam ouvir ele tocando, é um artista!
— Não é pra tanto, Anne. — Na esperança de reduzir sua excitação, Neil sussurra em seu ouvido.
— Você podia tocar o tema daquela novela que o protagonista é, ai! Como era mesmo? — Enquanto Ayane explicava, sem alguma ponta direta, a faixa que gostaria de escutar, o pequeno Campanella encara a menina com uma feição incrédula.

ATO 7: EM MEU CORAÇÃO
— Parece que ele tá acordando!
Sério, gente! Isso é muita maldade! —
— Não se esqueça que o nome dele é Neil!
— Hã? O- o quê? — Ao abrir os olhos lentamente, Neil sente um súbito arrepiar em suas costas.
Estava deitado em um gramado, bem gelado por sinal, e seus amigos, rodeados em torno de si, o encaravam com expressões intercaladas entre a preocupação — provavelmente, apenas de Anne — e risonhas.
— Como eu vim parar aqui? — Se coloca sentado, percebendo que, nem de longe, se tratava de seu quarto na moradia de Anne.
— Ah, é uma longa história. — Diz Kai, segurando o riso.
— Basicamente, você dormiu por quase dois dias e te trouxemos para cá de manhãzinha! — Continua Yuuta.
— Justamente no dia de iniciarmos nossa jornada Pokémon! — Finaliza Ayane, com um sorriso.
O garoto de óculos dirige a expressão incrédula e perdida para Anne, na esperança de que falasse algo para explicar o que havia acontecido.
— Eu não concordei totalmente com isso, tá bom? Não me olha assim! — Exaspera em defensiva.
— Mas- mas e o Festival da Boa Colheita?
— Você não pode ir, infelizmente. — Diz Yuuta, forjando a melhor de suas expressões tristonhas. — Achamos que seria inconveniente acordá-lo diante de todo o seu cansaço daquele dia!
— Mas trouxemos uma lembrancinha! — Kai balança um chaveiro com um pequeno Slowpoke cravado em biscuit contendo uma palavra grafada “DONKEY”.
— ... Ora, seus- seus...!
— FELIZ ANIVERSÁRIO ATRASADO, NEIL! — Gritam em coro, acompanhado de risadas.

Com as bagagens nas costas, o quinteto deixara a cidade de Camphrier sob muita reclamação de Neil a respeito do ocorrido. O consolo em forma de chaveiro acabou sendo um aparto para a sua mochila que, apesar da ofensa, acabou gostando da qualidade do artesanato.
Logo mais adentrariam à rota 7, se não fosse pela última parada em um íngreme campo esverdeado para um curto descanso. Apesar do clima levemente frio, o tempo sinalizava fortes indícios de um sol limpo e um céu azulado, ainda que a depender da direção avistada ao horizonte poderiam se deparar com uma futura frente fria abrangida por uma tempestade de neve.
— A vista de Camphrier é muito bonita daqui, devo admitir. — Diz Kai, mirando seus olhos nas dezenas de telhados insignificantes perante a distância e, mais ao fundo, o impiedoso Castelo Shabboneau.
— Espero que o festival tenha sido muito divertido. — Neil pragueja, ainda um bocado decepcionado com a sua ausência por um motivo tão fútil abordado pelos colegas.
— Vão rolar muitos outros festivais no decorrer da nossa jornada, Neil. Não fica assim! — Consola Ayane, entre risos.
— Espero mesmo que sim. — Diz Anne, acariciando sua Misdreavus em seu colo. — Desculpa por isso, Neil.
— Humph, tudo bem. — Dá de ombros. — Aposto que provavelmente eu faria o mesmo em outras condições, e já posso especular o meu próximo alvo para algo desse naipe. — Olha para Yuuta e Kai com maldade.
Afinal de contas, apesar das esbravejas e das decepções, os cinco nutriam de uma forte amizade que ninguém poderia contestar.
E amizade é isso. Amigos sabem quando serão amigos, pois compartilham momentos, dão força e sempre estão lado a lado. Seja nas conquistas ou nas derrotas.
Nem sempre é pensar do mesmo jeito, mas abrir mão de vez em quando. Para Neil, suas amizades eram como ter irmãos que não moram na mesma casa.
Poderia compartilhar segredos e emoções. Desfrutaria de compreensão e diversão. Em suma, poderia contar com alguém sempre que precisasse.
Ainda assim, é ter algo em comum, não ter nada em comum — ainda mais considerando a forma como conheceu Kai Mansur — ou não ter absolutamente nem um pingo em comum e, simultaneamente, compreender que há mais em comum do que imaginavam.
Por fim, para o jovem Neil, é sentir saudade e querer dar um tempo. Seja uma preferência ou um ciúme. Amizade que é amizade nunca acaba.
Mesmo que crescessem e eventualmente outras pessoas aparecessem em seus caminhos, amizade não se explica.
Ela, simplesmente, existe.
GYAAAAAOOOH!
Subitamente, a reflexão do jovem de jaleco é interrompida por um estrondoso e peculiar piado de alguma ave.
Não só ele, mas ao avistarem o manto azulado à disposição, todos presenciam um majestoso pássaro trabalhado especialmente no vermelho, laranja, branco e verde. Além disso, o seu trilho definido por suas espantosas e belíssimas asas deixava um nítido arco-íris para o encanto nos olhos dos presentes.
— Vão ficar parados aí?! — Anuncia Yuuta, já de pé e postos a correr. — O último a alcançar este Pokémon é um Hippowdon com dor de dente!
Assim, os demais se levantam de prontidão, com exceção do último da vez — o próprio Neil.
— Ei, esperem por mim!
Em seguida, descem a ladeira que percorreriam calmamente com sebo nas canelas. A paisagem deixou de ser objeto de admiração quando suas cabeças se voltavam para cima a fim de acompanharem o voo daquela criatura, até então, desconhecida.
Poderiam denotar que este já era, de fato, o início de suas jornadas. Ao menos, o sentimento de liberdade e longe de repressão que Neil sentia ao enfrentar o vento gelado cortando o seu rosto não poderia ser mais prazeroso.
Isso sim que era vida, afinal. Longe do falso amor, da obrigação exagerada e da razão acima da emoção em qualquer aspecto. Finalmente o jovem Campanella podia inspirar o ar com gosto e gritar para que todos ouvissem o quão bom era se desprender das garras do medo silencioso que o consumia de sair de sua caverna.
Ainda que seus amigos tivessem suas próprias maneiras de enxergar o mundo e seus problemas, sejam pessoais, familiares ou amorosos, estavam ali para o que desse e viesse.
O que seria do minuto seguinte ou do amanhã? Ninguém era capaz de afirmar, nem mesmo ele — cujo aspecto mais denotado em sua personalidade era a afinidade de especular e estudar possibilidades e circunstâncias — conseguiria dizer que situações, perigos e dentre outras coisas poderiam enfrentar a cada ponto visitado.
Tinha tanto para compartilhar para o mundo e gostaria de ser correspondido nesse quesito. A cada cidade que visitasse, gostaria de nutrir um pouco de sua essência e compreender o seu real propósito nessa jornada que, de repente, brotou em sua vida.
Claro que jamais dispensaria o seu primeiro Pokémon — e primeiro amigo — que batia suas asas com anseio ao seu lado, o acompanhando da mesma maneira que sempre esteve ao seu lado desde o momento em que bicou uma janela aleatória da cidade de Lumiose.
Talvez, tanto o garoto quanto o Pokémon jamais cogitariam o tamanho do sentimento que cultivariam um pelo outro e por muito mais que pretendem enfrentar neste mundo sem porteiras.
Não demorou muito para a ave avermelhada sumir da vista de todos de forma abrupta, restando apenas o arco-íris desenhado no céu.
Com certeza era algum Pokémon grandioso e Yuuta, com uma lenda de uma criatura legendária denominada por Ho-Oh na ponta da língua, começou a falar sem precedentes a respeito do seu vasto conhecimento a respeito.
Essa, sem dúvidas, seria uma das inúmeras lendas, mitos e desconhecidos que se deparariam pelo mundo dos Pokémon.
A verdade é que eles sabem disso tanto quanto nós sabemos. Que essa jornada cumpra o seu propósito para cada um desses jovens sonhadores e que o mais difícil dos desejos, com muito esforço e determinação, seja alcançado.
Juntos.
.
•
*
TO BE CONTINUED
PUBLICAÇÃO ORIGINAL EM 14/12/2020

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