Capítulo I | Chamas

Alisson Parker nunca foi indecisa perante os seus ideais e objetivos, mesmo que o preço fosse alto demais a bancar. No auge de seus vinte e tantos anos, praticamente uma completa mulher, estabeleceu a maior de suas determinações quando se ingressou para a ThunderStorm, uma organização que mostrava competência e ardilosidade quanto aos seus propósitos.
No entanto, para isso, não estava preparada em lidar, principalmente, o trabalho ao lado de um idiota. Um completo e profundo idiota.
AVISO
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O papo foi dado
A reunião estava marcada para daqui quinze minutos. Extraoficial, o que acrescentava uma parcela de descompromisso e falta de vontade da parte de Alisson. De certo, resistiria ao puxa-saquismo das gêmeas, Andy e Mandy, o ar desnecessariamente positivo e analítico de Gin ou os olhares acusatórios embutidos nas ênfases ríspidas de Akane. Com sorte, cogitava apenas alguns relatórios de missões — que seus tamborilares nervosos sobre a porta de seu armário insistiam apenas aos resultados positivos — e encerrariam o mais rápido possível.
Fazia dias que não acalentava uma boa noite de sono — nem se dava ao prazer de denotar o termo “digna”, a julgar por suas olheiras que custava a disfarçar com uma dosagem irrisória de base facial — e, diga-se de passagem, não se sentia tão influenciada quanto à sua mudança de humor, entretanto, o cansaço físico e a forte demanda de sua presença em uma série de locais estava ficando, no mínimo, intragável aos seus músculos aquecidos pelas dores.
Gesticulou os braços nus em sentido anti-horário algumas vezes. Um pouco de alongamento seria o disfarce ideal para perdurar mais algumas horas de algum trabalho braçal, caso houvesse. Em determinado ponto, pressionou com um bocado de força a região correspondente ao bíceps, onde se certificou — sem qualquer necessidade — da presença de uma moderada cicatriz atrófica um pouco abaixo da cabeça do músculo. Era um bom lembrete a cada vez que a acariciava, na realidade.
Por fim, suspirou de forma pesarosa e abriu o armário. Sua organização não era uma das mais condecoradas ou digna de respeito para o mundo, mas conseguia se localizar muito bem a respeito de cada tranqueira que depositava naquela enorme caixa metálica e vertical. Retirou uma blusinha, do estilo top, preta de um dos cabides, acompanhada de uma das poucas calças jeans bem dobradas que restaram no compartimento inferior daquele caixote cinzento e gelado.
A temperatura no interior do dirigível era de aproximadamente dezoito graus — a pressão ocasionada pela altitude era a principal responsável pela queda brusca — porém, havia se acostumado com fatores bem piores. Além do mais, uma pequena fração de independência corria por suas veias quando não se limitava a seguir o padrão de vestimenta tão formalizado de seus inferiores ou superiores. Por outro, e o último, lado, ainda era uma jovem mulher e estaria preparada para que, no pior dos casos para a melhor das oportunidades, usufruísse de seu corpo — o qual, modéstia a parte, julgava como um verdadeiro e íntegro monumento — para obter qualquer vantagem que fosse sobre o inimigo.
Os alojamentos de cada representante não disponibilizavam os serviços de um hotel cinco estrelas, mas davam para o gasto, principalmente para Alisson que não media esforços para se contentar com o pouco. Sem o auxílio de um exagerado e métrico espelho, empoleirou a parte de trás de seus longos cabelos ruivos em um coque duplo. O trançou com o restante de suas mechas e se contentou com as duas franjas soltas à frente que se encurvavam e morriam na altura de seus ombros. Além do mais, calçou um par de botas negras de cano médio e se julgou pronta para o espetáculo de horrores que a aguardava na próxima sala.
— Agora — Retornou ao armário. — Onde está o — Procurou um de seus braceletes favoritos. Pelo pouco que remexeu, sem sucesso, encontrou até um pacote amassado de petiscos que confiscou até o lixo.
Antes de trancar a porta, outro objeto ao fundo da bagunça a chamou a atenção. Camuflado em meio a alguns papéis enrolados e sob algumas toalhas de rosto coloridas, certificou-se de que necessitava segurá-lo mais uma vez — por mais que já havia perdido a conta de quantas vezes repetia o mesmo procedimento, em circunstâncias diferentes. Estava mais para uma autoafirmação que se prezava, com sigilo e voluntariedade, a reforçar os pilares que a sustentavam e a moviam para qualquer que fosse o destino.
Suas emoções não cambaleavam com qualquer tropeço, tampouco se considerava uma personalidade apelada ao sentimentalismo barato e enfadonho. No entanto, o fato de apalpar aquela pequenina caixa avermelhada, um tanto desbotada e avariada pelo tempo, era mais do que suficiente para lhe pregar um minúsculo sorriso embasbacado no semblante que perdurava, com todas as suas forças, a maior neutralidade possível.
A quem queria enganar, afinal? Procurou qualquer canto que pudesse se apoiar, tanto física quanto psicologicamente — a maciez do colchão nunca a ninou tão bem quanto a esse quesito — e ali permaneceu sentada por longos e pensativos segundos. Vez ou outra, se pegava brincando com a caixinha, tamborilando as unhas recém-feitas sem muita ênfase ou, ainda, chacoalhava o pequeno cubículo sem pretensão de mudar aquela estranha, porém reconfortante rotina. Não estava vazia, tinha conhecimento. Depois de tanto tempo.
Talvez, era a brecha necessária para que deixasse de pensar ou, até mesmo, cogitasse horizontes inacessíveis para aquele momento tão único. Encarou o pequeno selo, agora violado e quase inexistente próximo à fechadura da caixa, na mais apta lembrança de que resguardou ao tempo em que a recebeu. Era uma droga, murmurou, bem baixinho, para que apenas o seu coração esmorecido e revoltado pudesse ouvi-la. Ser emotiva assim, não era de seu feitio.
De forma gradativa, deitou-se, fechou os olhos e, mesmo com os cílios um tanto palpitantes, permitiu que se entregasse a uma feição serenamente agradecida com as memórias turbulentas. De outro modo que as fizesse doer menos, quem sabe. Só ela poderia confirmar o que refinava a partir de um sorriso melancólico que se desenhava em sua face. Ah, que dilema. Estava quase agradecendo aquela que, outrora, estava predestinada a culpá-la por toda a eternidade. Se pegou em um risinho ingênuo quando mergulhou nas recordações tão convidativas daquele objeto avermelhado.
Quantas lembranças, martirizou. Se soubesse, de alguma forma, como estaria nos dias atuais e se pudesse, inimaginavelmente, levar a mensagem de que tanto necessitava que alguém a chamasse por Chaminha mais uma vez — apertou a caixinha com um pouco mais de força, no propósito de abri-la. O clique da trava favoreceu um gesto complacente por sua parte, assim que abriu os olhos um bocado marejados.
Retirou o colar do adorno e o pendurou ao ar. Balançou de forma suave, algumas vezes, seguindo a pedra brilhante e vermelho-laranjada com os olhos. A estridência do mineral não apenas reacendia o brilho em suas pupilas como fomentava a sua, anteriormente, feição quase impiedosa perante às emoções para um semblante mais inconsistente e, como odiava ter que assumir isso, humanizado.
Como lembrava que aquela figura era boa com as palavras ao mesmo tempo em que a sua própria personalidade destemperada mal conseguia lidar com isso — e ainda assim, a compreendia de uma forma que não conseguia explicar. Na verdade, enxugou a primeira lágrima que trilhou a quina de seu olho direito. Sabia, sim. Como a amava, era indescritível e, de certo, algum texto bonito seria conveniente de sua parte para amenizar suas piores emoções. Como sempre foi.
Tinha tanto para dizer e, simultânea e contra as suas vontades, nada para quem gostaria que pudesse ouvi-la. Despendurou o colar e, vagarosamente, o abraçou rente ao seu peito. A ciência de que era belo, admirável e explosivo, estava careca de lembrar e relembrar. Contudo, o que não conseguia fixar era a ideia de que o restante da pedra jamais encontraria com a sua outra metade. Não era pedir muito. Mas, mesmo assim, lidar com a difícil verdade não era algo que estava adepta a construir da noite para o dia, ano após ano.
Infelizmente, foi interrompida quando ouviu algumas batidas na porta. Pelo que interpretou dos toques tão idênticos ao fim da melodia Beyer No. 8, podia muito bem reconhecer sobre quem se tratava. Tardou uma fração de segundo para que o diretor desse as caras à moça ruiva.
— Ora, pelo visto — Carregou a ironia em sua voz. — Eu cheguei numa péssima hora, né?
— Nem começa, Morgenstern. — Por fim, se rendeu com um bufar impaciente e, em total indiferença, adornou o colar em seu pescoço.
— A reunião está para começar. — Gesticulou, com os olhos, em direção da porta. — Eu, como Tenente, devo me certificar de que todos os membros estarão presentes e—
— Corta essa. Eu já ouvi esse discurso umas mil vezes. — Se levantou. — Além disso, eu já estava prestes a sair.
— Nesse caso. Minha dama. — Gesticulou o chapéu no intuito que a convidasse a sair, com um ar ligeiramente cômico em seu semblante.
— Pff. Idiota. — Apesar do breve espetáculo horroroso, Alisson cedeu a um brevíssimo riso. — Ah. Se contar para alguém que esteve ou o que viu aqui, você morre.
— Foi o que a minha ex disse antes de nos casarmos. Olha só no que deu. — Deu de ombros, divertido. — Eu diria até que já estava morto desde essa época.

A proclamada reunião, como priorizada de caráter urgente e imediatista, foi o fiasco que Alisson não se surpreendeu em reafirmar. Além de nada conclusivo, o bate-boca desnecessário da senhorita Aiko com o senhor Morgenstern, ainda teve que presenciar uma aposta fajuta envolvendo a desforra profissional do cientista Yatsu. Poderia considerar como finalizada, embora a questão do exagero a respeito do relatório de uma das cobaias não tinha sido completamente respondida.
Enquanto a dupla de garotas ajeitava alguns papéis sobre a mesa e Gin tirava sarro de alguma coisa ao lado de Akane — a qual não parecia se importar muito com o seu positivismo sobre a tal aposta — a moça ruiva depositou o seu olhar ligeiramente desconfiado sobre o rapaz de sobretudo que deixava a sala, despreocupado e bem-humorado como o de costume — apesar de que havia algo diferente, mesmo que ela não pudesse apontar o que, ou melhor, quem havia despertado essa estranha sensação em torno da aura sarcástica daquele indivíduo.
— Ei, Morgenstern. — Sua voz o alcançou antes de abrir a porta do auditório.
— Sim? — Retrucou com o olhar convidativo e um reles sorriso no rosto.
— Por que diabos você escreveu só sobre o tal Yuuta? — Folheou, sem muita ênfase e mais uma vez, alguns relatórios deixados sobre a bancada. Nem era necessário muito esforço para reconhecer a caligrafia descansada e arredondada de seu companheiro de trabalho, apesar do espanto da quantidade de informações a respeito do experimento nº 16. — E por que escreveu tanto sobre ele?
A questão, no mínimo, audaciosa e impactante repercutiu aos demais cantos da sala. O olhar curioso e maroto de Gin para ambos foi o primeiro a contestar o silêncio, talvez obteria alguma informação relevante para dar segmento à vitória em seu caso isolado. Akane não demonstrou de forma tão explícita, mas cessou, de imediato, a sua atividade de preencher alguns detalhes em uma folha de papel destacada de um bloquinho de notas. Os demais conservaram-se em encarares indiferentes, porém retóricos.
— Quem sabe? — Riu de leve. De forma fajuta e nem um pouco convincente, acenou brevemente para todos (em especial, para a sua favorita companheira de trabalho) e abandonou o recinto.
Traste, cogitou com o cenho franzido. Poderia praguejá-lo de todas as formas possíveis, mas não o fez. Primeiro que estaria falando aos quatro ventos e, depois, foi o único da assembleia que apresentou progresso no trabalho, por mínimo que fosse. O acúmulo de funções, a falta de cooperação ou vontade por parte dos outros, a personalidade irônica de Pether. Fatores que contribuíam para efervescer a ira em seu interior. Mais um pouco e estaria a ponto de explodir antes mesmo que concluísse o seu objetivo, entregue àquela gerigonça voadora. Soava tão vazio quanto desesperador, se analisasse por outro ângulo.
Suspirou profundamente, à medida que seus punhos se descerraram de forma lenta e custosa. Teria um papo sério com aquele miserável, ah, se teria. Ainda disponibilizava de um bom tempo até a próxima missão com aquele grupo de fracassados em observação. O suficiente para esclarecer alguns pontos e colocar outros pingos nos is.
Deixou a sala às pressas. Com sorte, o alcançaria no corredor principal e, mesmo que não o conhecesse muito, tinha ciência de que aquela figura esquisitona optava por se trancafiar em algumas salas isoladas e distantes de todos. Seguiu o caminho martelando o assunto em sua cabeça e como discorreria algumas dúvidas principais, de forma que o outro abrisse o bico para algo relevante. A certo ponto, até mesmo o toque nervoso dos saltos de suas botas sobre a passarela metálica da área estava conseguindo a tirar do sério mais uma vez. Seria um dia e tanto, frisou com desdém e com as sobrancelhas exaustas.
— Você não está aqui por algo tão simples. — Murmurou consigo mesma, assim que dobrou uma esquina com duas divisórias. Não teria ido para a ala dos depósitos e da manutenção, a menos que estivesse procurando coisa nenhuma para fazer. Seguiu o outro caminho. — Quem realmente é você, Morgenstern?
O destino sorriu para a senhorita Parker quando observou, de quina, o seu alvo adentrar uma das três salas em uma ala destinada à investigação e queima de arquivos. A certo ponto, estranhou a visita do homem em um local tão específico e, dado o momento, fora de contexto. Se estava procurando algo a respeito da cobaia que tanto escreveu, seria melhor consultar alguém da equipe responsável ou, em último caso, o departamento de pesquisa que situava do outro lado do dirigível. Se colocou de costas contra a parede e espichou a cabeça, de forma sutil e quase imperceptível. A porta estava entreaberta e, talvez, poderia ouvir algum comentário isolado por parte de Pether — já que, assim como ela, tinha a esquisita mania de conversar sozinho em grande parte do tempo.
Um minuto se passou e nada. Nem mesmo o som de algum clipe retirado de uma pasta. Não tinha conhecimento se todas as salas projetadas para aquele veículo eram isoladas acusticamente, tampouco perderia tempo questionando esses detalhes frívolos. Caminhou, de forma sorrateira, até a sala — intitulada como Despacho e Queima de Arquivos | Prioritário —, na humilde ponta dos pés, deu graças aos deuses que conseguiria espionar sem que sua sombra fosse projetada para o interior do recinto. No entanto, as luzes apagadas a transtornaram um bocado.
Todo aquele suspense estava quase a matando por dentro, não da maneira como se esperaria em um filme do gênero. Estava nervosa, sim. Por toda essa ladainha e mistério para algo que, no final das contas, deveria ser tão retardado que poderia facilmente dar uma surra naquela cara de pervertido. Sem mais, entrou dispensando qualquer cerimônia.
— Muito bem, Morgenstern, o que você tá fazen— Assim que acionou o interruptor, deu de cara com o rapaz sentado com uma prancheta e uma caneta em mãos. — ...do?
— Pelo visto, a palavra “privacidade” não faz parte da sua vida, não é mesmo, senhorita Parker? — Indagou, um ligeiro irritado.
— Não é isso. — Retrucou, um tanto sem graça. Coisa que não durou muito tempo, até que converteu o seu semblante para indignação. — Ei! Não tenta virar o jogo, não! O que diabos você tá fazendo aqui?!
— Nada demais. Nada demais. — Abandonou a prancheta e continuou a pressionar o clique da caneta. — A pergunta é: o que a senhorita está fazendo aqui?
— Ah, qual é? — Apoiou as mãos na cintura. — Dá para deixar o “senhorita” de lado? Eu sou só dois anos mais nova do que você.
Ainda que a recepção não tinha sido do jeito que imaginava — se é que havia pensado nisso — Alisson não pode negar o quão alterado o jovem Morgenstern estava. Para alguém que, há, literalmente, três minutos atrás estava distribuindo risos e sorrisos da forma mais desnecessária possível, vê-lo um tanto acuado e desengonçado por causa de algumas folhas ao seu lado era, no mínimo, suspeito.
— Hã, é mais algum relatório sobre o Yuuta? — Tornou a cruzar os braços, assim que se debruçou contra a porta e desfrutou de uma das botas como apoio.
— Não, não — Ajeitou o seu chapéu e sorriu de forma introvertida. — Isso aqui é, hm, algo que eu precisava anotar para futuras ocasiões.
Que era mentira, ela estava careca de saber. Desistiu da porta e caminhou até o rapaz. Pôde perceber os sinais de alguém que não sabia acobertar o que estava fazendo — o que era estranho, visto que nunca teve problemas gritantes com ele, profissionalmente falando — com os trejeitos comuns para o flagra. Olhos inquietos e sem um ponto fixo, a garganta engolindo saliva mais vezes do que o habitual e o insistente tamborilar de uma das pernas apoiadas na banqueta.
— Deixa eu ver. — Apossou da prancheta que, à primeira vista, deveria ter umas duas ou três folhas preenchidas. — “No capítulo de hoje”, “ideias para a parte final”. O que é isso? Uma novela? — Pela primeira vez depois de um bom tempo, se deixou levar por uma boa, breve e gostosa risada.
— Acho que isso não te diz respeito, dona Parker. — Enfatizou com tanta precisão que a vítima do ataque verbal sentiu a provocação.
— Ah, não? — Arqueou uma das sobrancelhas. — Vejamos. Hm, um dos membros da nossa equipe guarda um terrível segredo! Oh, não! O que pode ser? — Forjou, aos olhos de Pether, uma atuação digna de ser desprezada, ainda que a ironia estava sendo devolvida na mesma moeda. — Ele é um noveleiro barato e presunçoso!
— Me dá isso aqui! — Tomou a prancheta à força das mãos da moça. — Por que não procura outra coisa para amolar, hein? Pode começar por essa pedra mal esculpida nesse colar de loja de um e noventa e nove.
— Você — A gota d’água para Alisson reagiu diretamente aos seus instintos. Agarrou o jovem Morgenstern pelo colarinho da camisa e o empurrou contra a parede. Os dentes cerrando pelo desejo descomunal de suas emoções explosivas e incontroláveis. Os olhos avermelhados aguardando por qualquer palavra, da outra parte, mínima que fosse, para se satisfazerem com a agressão. — Meça muito bem as suas palavras. Morgenstern. — Frisou com desprezo.
Por outro lado, aquilo ali não valeria uma surra, foi o que o seu cérebro insistiu mesmo que o segurasse com força. Ainda que estivesse irritada, pôde perceber que o comportamento valia para ambos, mesmo que o outro sequer equiparasse à sua raiva. Além disso, não observou um resquício daquele senso de humor controverso que estava habituada. Pela primeira vez, em toda essa jornada de trabalho, o viu com medo e, em especial, algo mais profundo que, de certa forma, conseguia compreender.
O suficiente para largá-lo e devolver a sua mão rente ao seu corpo. Sem mais uma palavra, se retirou do ambiente.

A missão de reconhecimento de área não poderia surgir em momento mais inoportuno do que o atual. Planejada para após o pôr do Sol, Gin e Akane supervisionariam o Sul da ilha enquanto, infelizmente, Alisson foi escalada com Pether para cuidarem da direção Norte. Uma inspeção de rotina, nada demais. Os alvos precisariam estar vivos para tal e, de preferência, que não dessem muito trabalho para que fossem apenas registrados nos relatórios como mais uma noite concluída.
Apesar dos pesares, o início da noite estava satisfatório. O horizonte, adocicado com as cores fortes da despedida da estrela solar e umedecido com a presença dominante do azulado-escuro do restante do céu proporcionava um clima temperado e relaxante aos ombros da ruiva, especialmente quando podia sentir a brisa noturna percorrendo entre seus braços e sua cintura nuas. O acampamento improvisado se deu ao alto de uma colina, onde foi definida como a rota em alto potencial para avistarem qualquer anomalia pelos possíveis trajetos que as cobaias teriam em meio ao alcance projetado pela outro time, ao Sul.
Além do cortejo profissional, nenhuma palavra fora deste âmbito foi dita por ambos. O homem de sobretudo, sob a temperatura de estimados vinte e dois graus, estava para armar uma desnecessária fogueira à frente das duas barracas. Enquanto isso, a moça tentava buscar algo, com auxílio de um par de binóculos, que resultasse em um andamento do projeto, mesmo que fosse, no perdão das palavras, o corpo mutilado de alguma das vítimas.
Ainda com a distração mesclada de suas obrigações, Alisson não conseguia se concentrar o suficiente quando voltava a pensar no que poderia ter impactado tanto aquele imbecil ao seu lado para que o rumo da conversa fosse destinado às acusações. Não era do feitio de Morgenstern, mesmo que perdesse a compostura ou não soubesse como enfrentar determinada situação. O que também não desmerecia o fato de que havia se sentido insultada com tamanho menosprezo. Martirizou, ou melhor, pensou com peso enquanto depositou a mão mais uma vez em seu colar pendurado. Apertou a pequena rocha avermelhada com um pouco de força. Estava tão quente e, assim como esperava, brilhava tanto à noite quanto durante o dia.
Quando se deu por conta, estava sorrindo sozinha, feito uma idiota, para um colarzinho que foi intitulado como uma merreca de artigos em promoção. Podia tolerar qualquer coisa, menos isso.
— Deve ser bem importante para você. — Tão logo, a voz de Morgenstern invadiu o seu sentimento de frustração. — Me desculpe por dizer o contrário.
Virou o rosto, tão incrédula quanto surpresa com o pedido de desculpas que, por ora, soou natural e sem alguma pretensão futura para gracinhas. De qualquer maneira, não ia se amolecer por causa de uma trégua dessas, se era isso que desejava.
— Hm. É. — Tornou a olhar o horizonte. — É, sim.
Por fim, o rapaz conseguiu acender a fogueira. Retirou o sobretudo e manteve-se com as mangas da camisa arregaçadas. Afrouxou a gravata vermelha, de forma que aparentasse mais um lenço solto, e se confortou com um breve e claro sorriso.
— Eu imaginei. Você ficou pé da vida naquela hora.
— O que não te dá o direito de achar que isso não vale nada. Muito menos opinar a respeito. — Respondeu, tão ríspida que até a ventania congelou a corrente nas proximidades.
— Você tem razão. — Riu de leve e abaixou o olhar à fogueira. — Eu sinto muito.
A ruiva não respondeu, o que não escondeu o seu espanto contínuo pela sinceridade e a mudança repentina do comportamento daquela figura tão depravada de sentimentos. Por outro lado, para um choque de realidade a este nível, era de se presumir que havia pensado ou, até mesmo, relembrado de algo que podia ser intenso à medida que considerava a unicidade de seu presente de tanto tempo atrás.
Não precisava entendê-lo para, principalmente, almejar o seu objetivo. No entanto, a atmosfera densa estava completamente diferente do habitual. Que os raios partissem em sua cabeça por concluir isso, mas não estava sendo a mesma coisa trabalhar ao lado de Pether com essa sensação de que estavam com débitos pendentes um ao outro. Reiterando o fato, não precisava, mas será que seria tão ruim se o fizesse?
Poderia começar com a sinceridade acima de tudo, fator que não era difícil para a sua personalidade imediatista, até mesmo para alguém como o senhor Morgenstern. Desistiu dos binóculos por ora, se levantou e se acomodou em uma pequena tora próxima da fogueira. Não precisava de aquecimento, mas apreciava o fogo como um todo. Se alguém tão especial — quanto o colar que tornou a segurar — estivesse ali ao seu lado, estaria mais segura do que nunca. Os lados explosivo e confiável das chamas estavam sob o seu controle, mas tinha total noção de que ainda eram traiçoeiras.
— Você escreve bem. — Comentou, um tanto distante, porém com decência em perseverar a integridade no tom de voz. — Não seria um péssimo roteirista.
— Diretor.
— Hm? — Estranhada, tornou a encarar o semblante do rapaz.
— Desde criança, eu queria ser diretor de um filme. — Enquanto quebrava alguns galhos, fazia o favor de alimentar a fogueira.
— Ah, é? — Sem muito interesse a princípio, cogitou um sorriso de canto. — Parece que você se desviou um pouquinho da rota, hein?
— Parece que sim. — Riu um pouco. O fogo trepidava no reflexo de suas lentes. — Acho que seria melhor ficar parado em uma encruzilhada.
— O que te impediu de fazer isso? A sua incompetência?
— Eu diria que a vida me ensinou que não poderia ser o que quisesse. — Sorriu de leve, assim que direcionou o olhar acima. — Mas por que estamos falando da minha vida, senhorita, ou melhor, Alisson?
— Não precisa dizer. Se não quiser. — Deu de ombros. — É só- estranho. Te ver assim.
— Ah. — Jogou o restante dos galhos em posse na fogueira. — É justo. Na verdade, eu acho que compreendo a importância do seu presente.
Antes que dissesse algo, Alisson percebeu que o rapaz retirava algo do bolso da camisa. Sem muita cerimônia, exibiu uma pequena pena, muito bem emplumada, dividida entre o branco-cristalino ao azul do fundo do mar.
— Quando eu era criança, hm, acho que devia ter sete anos, não sei — Se levantou e ofereceu a pena à moça. — Pode pegar. Não é uma pegadinha de mau gosto. — Riu.
Era bem macia, pôde constatar. Por mais que fosse apenas uma, estava extremamente conservada e não parecia ser de algum Pokémon do tipo voador comum de ser visto pelas redondezas.
— É muito bonita.
— Eu sempre quis ver, de pertinho mesmo, um Articuno. — Assim que recebeu o pertence de volta, reiterou, nostálgico. — Queria sair em uma jornada ao lado de uma Chikorita e gravar nossas aventuras até o capítulo final. Que bobo, eu. Pensava que seria o encontro com um Articuno.
— Pelo visto, conseguiu, não? — Analisou a pena nas mãos do rapaz mais uma vez. — Me parece com a plumagem de um Articuno.
— Ah, não, não. — Sorriu. — Isso aqui foi um presente de alguém que conseguiu. Minha mãe adotiva, para ser mais sincero.
O baque de reconhecer que o jovem Morgenstern era adotado não foi exatamente como esperava. Ao menos, considerou injusto como um sobrenome tão estranho não pôde ser originário de alguém tão referente à esquisitice.
— Então, o que você quer depois de tudo isso acabar é encontrar um Articuno para gravar a sua novela? — Perguntou, sem rodeios.
— Bem, não. Isso é — Desviou o olhar por alguns segundos, até encará-la novamente. — Isso é mais complicado, sabe.
— Hm. Eu sou péssima de palpites. — Alegou as mãos em desistência.
O jovem se dirigiu ao precipício da colina e respirou fundo. Se espreguiçou um bocado e, um tanto mais renovado, encarou o acampamento de volta.
— Eu quero saber das minhas origens, na verdade.
Alisson não diria, mas pôde comprovar que sua feição incomodada sentiu um decente aperto no peito com a súbita revelação do parceiro de trabalho.
— Até os seis anos, eu estive largado na esperança de poder comer e dormir à mercê de alguém que estivesse disposto a ajudar. — Inquiriu, com esquiva no tom de voz ligeiramente desconcertado. — Eu não entendia muito bem naquela época. O mundo era tão cruel que eu não sei como ainda tinha vontade de viver durante tanto tempo.
— Você não chegou a conhecer seus verdadeiros pais?
— Não. Mas quem estaria disposto a querer um garotinho de rua, não é mesmo? — Riu nervosamente, enquanto tamborilava os dedos entre sim. — Se eu devo a minha vida a alguém, é para a senhora Morgenstern e suas duas irmãs. Como foi difícil e, ao mesmo tempo, — Deixou escorrer uma lágrima. — Mágico aprender a ter uma família. Eu lembro que a primeira coisa que comi quando estive ao lado dela foi um pacote de salgadinhos. Ah, e bebi um suco de laranja. Desses, de caixinha.
— Que bela primeira refeição. — Achou um pouco de graça ao tentar imaginar a situação.
— Isso foi depois que voltamos do hospital. Eu tinha sofrido um acidente. — Riu de leve. — A maior ironia, sem dúvidas, foi o fato de que — Mordeu os lábios que, involuntariamente, se convergiam a um sorriso emocionado — A mulher que quase me matou atropelado foi aquela que me deu a oportunidade de nascer de novo.
— A vida tem dessas. Um dia, você é o saco de pancadas. Outro dia, você é quem dá a surra.
— É. Uma bela comparação. — Balançou a cabeça em negativa de forma suave. — Eu senti essa pancada aos dezessete. Quando a senhora Morgenstern veio a falecer.
Chutou uma pedrinha da colina e a encarou até desaparecer de sua visão. A queda era um tanto alta, concluiu.
— Eu- Eu nunca me senti tão impotente na vida — Retirou os óculos e enxugou os olhos. — Quando eu estava finalmente acreditando que tinha me tornado uma pessoa forte, ela, que era o motivo de ainda estar de pé, me deixou.
Alisson não contestou o momento, contudo, estava um tanto desconfortável ter que aturá-lo. Não sabia ao certo como reagir com os sentimentos dos outros, ainda mais quando simplesmente foram expostos de uma hora para outra bem à sua frente. Estava remexida com a situação, de fato. Ainda assim, não conseguia dizer alguma coisa.
— Sempre apoiou a minha busca pela verdadeira mãe. Me ajudou com algumas coisas que, mesmo não chegando a lugar algum, tentava com muita dedicação. — Sorriu consigo mesmo, melancólico. — Eu quero isso tanto por mim, quanto por ela.
Fez uma pausa, onde pôde conciliar um irrisório semblante reconfortado na direção da moça ruiva que, a princípio, reagiu com uma feição arregalada a qual não se esforçou para esconder sua surpresa.
— Pode ser que a verdade seja dolorosa, sim. Eu posso descobrir coisas que deveriam estar enterradas para que nunca mais fossem lembradas, mas — Suspirou. — Quando eu descobrir (e eu não desistirei disso), independente do que encontre, farei o possível para que, quando a minha vida passar diante dos meus olhos, valha a pena assisti-la.
Por fim, sentou-se de volta ao ponto de partida e retirou um ramo de palha do solo.
— Por mais que eu esteja envolvido num sequestro de dezesseis adolescentes. — Um pouco mais calmo, riu de forma proveitosa. — É uma pena que as coisas correram assim. Mas vamos fazer por merecer. Espero que eles também façam.
Tão logo, Pether observou que os binóculos haviam sido abandonados próximos de uma rocha entregue ao precipício. Se levantou mais uma vez e desarregaçou as mangas de sua roupa.
— Vamos revezar um pouquinho. Eu fico de olho nos pirralhos, se eles aparecerem.
— Não. — Sussurrou, quase inaudível. Assim que o rapaz passou ao seu lado, o puxou pela calça. — Fica aqui. Comigo.
— Hein? — A encarou, confuso. — Alisson, temos muito trabalho a fazer. Essa conversa, inclusive, foi um empecilho de quinze minutos, pelos meus cálculos.
— Então, só preciso de mais quinze.
Diferente do mencionado anteriormente, a noite não parecia tão hostil. Não era a harmonia que desejava, mas estava bom assim mesmo. Alguém que pudesse compreendê-la estava ao seu lado e, por mais que nunca pensasse que diria isso, não perderia a oportunidade.
— Tudo começou no meu aniversário, quando recebi — Apossou do colar mais uma vez. — Esse presente.
Poderia extrapolar do tempo pedido e, sinceramente, não se importava.
O fogo estava belo; as chamas, intimidadoras.
Era só isso que importava, no final das contas.
.
•
*
TO BE CONTINUED
O PAPO FOI DADO
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